24 setembro 2003

A fabricação de um livro

Para a letra J e todas as folhas que a têm

Há tantas folhas neste mundo, mas tantas!, que um indivíduo, por mais criterioso que seja, não consegue colocar umas em baixo das outras para fazer um livro. Um livro é difícil de fazer. Normalmente começa-se pela primeira página e acaba-se na última, mas há quem os faça de modo salteado. Um método indicado para baralhar o futuro utilizador e que garante foros de genialidade ao artífice. Mas a maior parte dos artífices dos livros, é bom notá-lo desde já, começa no início e acaba no fim. Há sempre um lugar à frente de um outro, há sempre qualquer coisa antes de outra, ou acima dela, ou à frente dela, dependendo da posição do observador. As pessoas racionais são assim, o que se há-de fazer?, são naturalmente levadas a manter-se na norma.

Eu, na minha ingenuidade, acho que o que é árduo é, precisamente, pôr as folhas em ordem. Ou melhor, numa ordem. Seja ela qual for. Por exemplo: qual é a folha que vai à frente de todas as que fazem parte do livro? Se todas forem grandes, fininhas, macias, de boa côr e boa textura, e se todas tiverem os cantos de cima dobrados para a frente convidando-nos a pegar neles para virar a folha, qual dessas folhas a gente escolhe para favorita? Isto é, para pôr à frente das restantes. Alguma dentre elas vai ter que estar logo a seguir à capa, e de resto não é essa a folha mais importante porque essa não diz nada; limita-se, como mendes da maia, a entalar-se entre a capa e as companheiras que se seguem. E alguma vai ter que estar a seguir a essa. Paciência... E outra depois. E outra a seguir. Mas quais?

Na verdade, deveria ter escrito o parágrafo anterior de outra maneira porque só vejo uma ordem para colocar as folhas. Mesmo se as separasse por país de origem, ou por matéria-prima de base, ou por trajecto efectuado até ser folha, ou por tonalidade, ou por rugosidade, ou por qualquer outra condição, a ordem seria apenas uma: da primeira à última. Em cada um desses hipotéticos grupos, não haveria outra ordem. Mesmo que se vire o monte de folhas de trás para a frente, a última folha passa a ser a primeira e a primeira a última, vista de costas, é claro. Detesto as evidências. Detesto o que é incontestável, porque o incontestável não existe. Detesto as verdades incontornáveis, e elas não param de se pôr no meu caminho. As verdades são incontornáveis quando não têm limites, e sem limites contrariam a sua função porque não deixam espaço para o que não é verdade. Impossibilitadas as não-verdades de existirem, tudo é verdade. E eu recuso-me a aceitar que tudo seja verdade. Porque toda a gente sabe que não é. Não é verdade, por exemplo, que as folhas se amarrotem quando as minhas mãos as percorrem afadigadamente; não é verdade que as folhas amoleçam quando o meu dedo mais comprido as humidifica para as virar de costas; não é verdade que eu já tenha folhas suficientes para fazer um livro. Sendo a verdade sempre absoluta, será verdade que eu quero fazer um livro?

A sério que queria fazer um livro! Um livro cheio de folhas bonitas, grande e pesado, sumarento e duradouro, porque um livro destes é uma fonte de prazer. Querer, queria; o problema é fazê-lo. Mas eu, mesmo que pareça demasiado paciente ou irritantemente retardado, não recuo perante nenhuma dificuldade, e por isso ando por aí, a tratar do assunto. Mas há tanta folha, meu deus! O caralho de folhas que há por aí... vocês nem imaginam!

Nos últimos dias resolvi começar a estender uma para lhe dar a consistência devida às agruras de fazer parte de uma obra para a eternidade. O material é de boa proveniência, o processo de fabricação decorreu nas melhores condições, de modo que o produto disponível é assaz adequado a manipulações. Ao tacto é macio, ao aperto é rígido, mas ao molde a coisa já não se processa com a mesma ligeireza. De tom claro, com partículas da madeira de onde é originária, linha de corte de alto que revela a opção do artesão de deixar pelugem solta, mais de formato linguado que o moderno ahquatro (moderno e pesadão, diga-se de passagem), ela era por tudo isso e por outras razões uma folha talhada para saltar para a frente de muitas outras já a monte. E estava, coitada, a subir os milímetros que a separavam do cimo, com muito custo, é certo, porque as outras folhas não se deixam pôr debaixo sem estrebuchar.

Vocês já alguma vez tiveram de endireitar uma folha quando ela teima em se enrolar? Então sabem como é uma dor de cabeça restabelecer o plano horizontal sem deixar marcas, rugas, enxovalhos, marcas por vezes profundas que não deixam à folha senão a possibilidade de passar pelo ferro, e é se quiser voltar a ficar direitinha. Portanto, as outras folhas bufavam, ou então era o vento que assobiava por entre elas, escoucejavam, contorciam-se... embora não fosse fácil, porque já tinham muitas outras por cima e muitas outras por baixo, de forma que lutar nessa circunstância de já estar esmagada entre outras folhas tão lindas e apetecíveis de desfolhar como elas não é obra desenganada. A nova folha em questão, sendo mais fina que as restantes, como hei-de dizer?, assim de um papel parecido com o papel-bíblia, apesar dos montes de Abraão e outras proeminências que se costumam encontrar por esses sítios, e sendo por outro lado mais fresca, deslizava com brilhantismo para um dos primeiros capítulos do livro. E eu estou em crer, não sou adivinho nem conheço bem a indústria livreira mas estou em crer que, se tiver oportunidade disso, a folha nova em questão que parece ser de papel-bíblia apesar dos tais montículos pode até acabar no prefácio, se não mesmo na dedicatória!

Não é que os meus amigos achem boa ideia. Eles, que edificaram bibliotecas inteiras, sabem o que se passa com as folhas que saltam de lugar subalterno para posição de destaque. Eles que, como toda a gente sabe, vieram de alexandria a nado, sabem por intuição o comportamento de todos os papiros e o efeito do tempo na sua textura e reacção perante a usura e a abusura. Eles sabem explicar porque razão algumas folhas do meio da tabela passam de um momento para o outro a brilhar: é que têm sebo!

Mas a opinião dos sábios para aqui não é chamada porque a teoria não é melhor do que a geada. Estava a descrever a evolução da folha que nos últimos dias resolvi começar a estender apenas para vos dizer que, vejam lá, não chega a gente a acabar de preparar uma folha para o nosso livro que logo outra não venha imiscuir-se na obra de criação! Pois é verdade o que vos conto. De uma esquina da mesa, ou detrás de um livro já escrito há muito tempo por outra pessoa e que a gente se limitou a encadernar, ou de outro local qualquer, surge como por encanto uma folha que estava de luto, ou estava simplesmente esquecida, ou cheia de pó ou sei lá, e se apresenta, escurecida mas viçosa e tentadora, pedindo com todas as letras que tem em cima para ser colocada num dos capítulos mais atraentes do livro — talvez entre o rapaz que se vai embora, para a guerra ou trabalhar para longe, e a decisão do pai da rapariga de convidar o filho do melhor freguês para jantar.

Mesmo que a gente tenha propensão para ajudar todas as folhas, e fornecer-lhes por exemplo refúgio no local que lhes cabe por condição, como se há-de fazer para convencer as restantes a apertarem-se um bocadinho mais porque afinal tem que se meter no livro uma outra folha, que leva o número de contribuinte da tipografia que o imprime? Dir-me-ão que por vezes se tem de fazer valer a autoridade que decorre do facto de se ser o criador do livro e impor, nem que seja obrigações solidárias. Até com sindicatos assim é: somos todos da mesma massa mas se nos aproximamos do fundo o escuro aumenta e no escuro a gente perde-se. Dir-me-ão porventura também que nem vale a pena consultar os outros fabricantes de livros ou discutir com eles desse assunto, porque eles lá têm os seus métodos e critérios e nós temos os nossos. É giro: já que se fala nisso, não sei se alguma vez repararam que cada um tem na ideia que a sua colecção de folhas é não só a mais selectiva como a mais bem ordenada, ou se pelo contrário vocês não dão importância a essas coisas e, portanto, não reparam em nada de especial. Pois não, vocês não fazem livros...

É que o acto de baralhar não é tão insípido como se julga, apaixona; não é tão dependente do acaso como pretendem os estrangeiros ao ofício, investe-nos. Outras actividades afins perdem no concurso do talento de elaborar um livro. Efectivamente, colocar folhas numa pasta não requer idêntica destreza, não exige o mesmo domínio das técnicas de selecção, classificação e arquivagem. Quanto muito, a dúvida reside no momento da etiquetagem, da escolha dos géneros e das classes, mas depois é relativamente fácil atirar com as folhas para a bolsa respectiva. Compartimentos contíguos, multimedianos porventura, mas não comunicantes — ou estás na bolsa da etiqueta azul ou na da amarela ou na da laranja. Não é a mesma coisa que fazeres parte de um conjunto homogéneo e no entanto hierarquizado.

Numa pasta com artifícios metálicos passa-se exactamente o mesmo, com a diferença que, nesse caso, o arrumador de folhas tem de fazer dois buracos, pelo menos, a cada uma delas. Com tal acção revela, desde já, desconhecimento da construção genética do material com que trabalha, na medida em que uma folha é fornecida com os dois buracos necessários ao ordenamento social; o que distingue o fabricante de livros é a arte de dissimular tais orifícios. O arrumador de folhas desvenda-os, ou apenas os identifica, e utiliza-os como ordenador não profissionalizado que é, enquanto a função do fabricante de livros é, antes, a de tapá-los, a de os preencher, sonegando-os a olhares infiéis. Amputar uma folha de uma parte do seu corpo, com o argumento, contestável, da necessidade de encaixe no padrão comum a todas, representado pelos dois finos tubos metálicos, significa pretender que a mutilação permite o alinhamento. Alguns dos grandes da História falharam nesse exame — é sempre necessário escolher com precisão as palavras com que se comunica mas mais importante é escolher os meios com que as pomos em andamento, e nisso eles cometeram erros. As barras da célula que mantém as folhas unidas dificulta também as mudanças de posição e, estático, o livro, no caso dos livros, definha, apodrece. As palavras mal utilizadas são a humidade dos nossos compêndios; e os meios mal aplicados a osteoporose das nossas estruturas.

Embora pareça o contrário, nada tenho pelo fabricante mais que pelo arrumador. Neste momento sou um fabricante de circunstância, não é esse o meu ofício nem a minha vocação. Fui assaltado pela primeira nuvem branca que passou e forçado a dar-lhe tacho e um justificativo de despesas. Estou neste lugar, senão pela primeira vez, em todo o caso fazendo o papel do principiante. O que quer dizer que não sou culpado, nem tenho preferências; nesse aspecto não sou ecuménico: todos os chulos são tão humanos como os juízes. Mas para não estragar o vosso caldinho, digamos que opto por estar do lado dos que fazem como eu: livros.

Evidentemente que não seria de crer eu meter-me em sarilhos para justificar um outro tipo de vigarista do livro que é aquele que dobra papel em quatro ou em oito, que o pressiona e o corta, por todos os lados, de tal modo que no fim cada um desses pedaços pareça uma folha, autónoma, independente. Esse canalha é, para a folha, o equivalente do cozinheiro para o macarrão — um generalista, um reprodutor. Ou seja, um prestidigitador, que de um único lenço faz um cordame multicolor infinito.

Até que alguém me prove a personalidade de um produto de clonagem, ainda que insistam na individualidade, e por mais que se oficialize a identidade, no que respeita a esses avulsos eu mantenho a teimosia do primeiro instante de todas as coisas. Ou seja, não podendo contestar contento-me sendo incrédulo. E ponto final, de nada vale discutir. Como disse, sou teimoso. Um livro faz-se, pacientemente, colocando com ternura uma folha em frente de outra, sucessivamente, uma vindo a ser elemento do grupo depois daquelas que o foram antes, ordenadamente, assim como estou aqui dizendo.

Tal como é indiscutível a suavidade desta fórmula de repetir sufixos (repararam?), assim é sem desafio o processo de gestão de folhas tão parecidas e tão diferentes que no acabamento não ficam nem uniformes nem desordenadas. A primeira a ser acariciada pode bem ser uma colocada no meio do rancho, como se pode perfeitamente tirar a limpo nos hábitos de avaliação de qualquer visitante de uma qualquer livraria. Esses indivíduos são mais detestáveis que os revisores de bilhetes — que os não imprimiram, nem decidiram do número de identidade ou dos restantes elementos, mas sabem identificá-los e furá-los. Os desfolhadores de livros nas livrarias procuram inspiração para justificar, posteriormente, a escolha, mas ignoram o que procuram exactamente. O que procuram então? Inspiração, precisamente. Um dado, uma ideia, um sinal, ocasional, fortuito, aleatório, que lhes forneça gramas a uma eventual decisão de ler, ou de dizer que estão a ler. Folheiam em pleno desinteresse do tecido que lhes passa entre os dedos, e por isso desiludem-se facilmente: a sua superioridade intelectual está em contradição com os cânones originais, sem os quais o seu intelecto comeria cascas de batata com feijões. Mais grave ainda, esse desprezo põe-se em contradição com os sentimentos das folhas. É chocante.

As folhas — pelo menos as que servem para fazer os meus livros — têm sentimentos. Quando lhes passamos a mão, mesmo nesse gesto mecânico do leitor distraído, elas olham para nós e produzem juízos. "Que parvo; a acariciar-me e a olhar para a página do lado!". Claro que elas não gostam que se tenham duas atitudes simultâneas. Não se deve vincar uma e preparar a seguinte, é mau. Sobretudo se, no desenvolvimento da leitura dos factos do mundo, se vai forçosamente vincar a que se havia preparado para passar de novo a mão pela que se seguirá. O paradoxo desta situação é que, contrariamente ao fazer do fabricante de livros, o tal distraído leitor com gestos mecânicos está a cada momento a dar, pelo menos em aparência, mais atenção à folha que, na lógica das coisas e na lógica do fabricante desse mesmo livro, se encontra por baixo, depois, a seguir... Em posição subalterna, portanto. É curiosa esta alternância na escala de valores: ora estás à frente, e daí em lugar de destaque, ora a tua importância cresce na medida em que estás atrás de outros. Não vale a pena terem "a impressão que", caros leitores; aceitem apenas, engulam o que vos digo. Isto só acontece nas sequências como são os livros: sequências de folhas. Todas postas em monte mas não em desalinho.

As folhas podem muito bem produzir juízos mas a minha sensibilidade diz-me que eu é que não procedi ajuizadamente ao conduzir o pensamento na direcção de uma verdade, já que tenho horror à verdade. A falta de território, de alternativa, de direito à contestação aflige-me. Falta-me o ar quando a verdade me atinge a traqueia: ela agarra-se, como um polvo, a todas as protuberâncias, com todas as suas mãos e todos os seus pés, com todos os lombos e todas as coxas, e não deixa passar mais nada! Tenho horror à verdade por o ser, por não ter costas e assim não poder dançar. Algo que rodopia e não deixa de ser exactamente o que é não passa de um enjoo em mar vidrado — não é verdade. Mesmo que o pretenda ser. O volume esgota-se, e isso é uma tragédia porque a sabedoria perde o sentido quando as dimensões se apagam, quando passa a existir apenas uma, a dimensão de um plano. Donde, para voltar à minha racionalidade, me permito a veleidade de afirmar que a verdade, em si, não o é. E posso esticar um pouco mais a corda, para baralhar os cansados de pensar, acrescentando que a verdade não é verdadeira.

Pois se virmos com atenção, até as folhas têm volume. Algumas, mesmo, um volume apreciável. Nas três silhuetas: na de perfil e nas de face. Daí que todas elas, colocadas umas contra as outras, peito contra costas, anverso contra verso, dêem origem a comentários — concludentes, bem entendido — do tipo "esse livro é grosso" ou "é um livro fininho". Sem a contribuição volumétrica de cada folha como se poderia chegar à conclusão do volume total de um livro? Bem sei que depende do papel de que a folha é feita, se tem mais ou menos serilha, mais ou menos gotículas de água ou de gordura, mais ou menos pelugem. Mas também depende do meu entusiasmo, já que estou aqui estou a acabar o livro sem sequer ter tocado numa só folha...

Pobre do fabricante que se deixa intimidar pelo volume de algumas das folhas ou, mesmo, pelo tridimensionalismo da sua obra. Presa fácil da chacota dos outros fabricantes, daqueles cujo objectivo se limita aos desdobráveis e daqueles que não vão além dos relatórios de ano fiscal, todo aquele que desdenha da própria concepção perde o sentido da sua missão de seleccionador. E de pastor. Não se está diante de um varredor de parques, que apanha folhas uma a uma para depois as sacudir, sem jeito, para o balde do lixo; ele não é um funcionário da alfândega que recepciona as ordens de embarque e outros formulários tão imprescindíveis como anódinos e lhes dá o despacho habitual. Não, aqui está-se perante um são-pedro que fiscaliza bases, senão registos, em vez de almas, e as adequa, convenhamos, por ordem de chegada, antes de lhes atribuir outro local no ordenamento socio-folhístico.

Porque tem de haver uma ordem qualquer, conquanto não seja mecânica pois tudo o que não é composto em desrespeito da regra é moralmente descomposto. Este pastor, como os outros são-pedros, goza de arbítrio na escolha e na colocação das folhas umas em cima das outras, que é prazer que se não reconhece a almeidas, alfandegários e inspectores ferroviários. Este pastor está acima de ridículas legalidades — princípios, regras, contratos, regulamentos, manuais, códigos, leis, disposições normativas e outras cadeiras-de-rodas da criatividade. Ordens ordinárias. Está acima de todos os emplastros e próteses que condicionam o vivo e a expressão do vivo, que é o mesmo que dizer a liberdade.

Mostrem-me os vossos maços de papéis. Esses álbuns que, embora atados com fita de cetim de dar virtude, não passam de amontoados de folhas soltas, avulsas, desirmanadas, tresmalhadas como todas as multidões e todos os rolos de palha. O compacto pretende ser união. Ah, ah, deixem-me rir! Ó núcleo: a tua molécula dá-se bem com a vizinha de cima? Que partilha com ela, senão a espécie? O compacto reivindica-se homogéneo, ele que apenas está sujeito à relação da força da gravidade com a massa. Antes estar sujeito à relação de marido e mulher! Quando há somente uma circunstância de proximidade a árvore pertence à floresta, e os fetos também. As minhas folhas, todas tão queridas umas como as outras, todas artesãs da minha existência, fazem, cada uma delas em todas, o meu livro.


Ó lombada: talvez tenha acabado abruptamente,
mas o teu papel é colar-me.
Inocenta-me, pois.


21.1.2003