24 setembro 2003

Se eu fosse o cão do Casimiro...

Eu não fui educado de forma a invejar ninguém ou coisa alguma, vantagem, situação ou circunstância. No entanto, teria, penso eu, gostado sempre de ser o que a cada altura não era (e nunca fui coisa por aí além). Como todos os garotos, e, depois, como todos os adolescentes, sonhava em ser isto e aquilo. Ah!, como adoraria ser isto, mais tarde aquilo…

Não sendo, por natureza, humilde de desejos, apesar dos insistentes conselhos de minha avó materna nesse sentido, eu aspirava a tudo, sentia-me nado e formado para quase tudo. Mais (muito mais!) por ânsia de felicidade do que por ambição irracional, dava largas ao meu ecletismo activista e isso até me inspirava. Transbordava de projectos a tomar forma definitiva quando "fosse assim", transvasava de ideias a concretizar logo que "fosse assado".

Devo desde já deixar claro que nunca me faltou generosidade — o grande empecilho é que ela estava reservada para o momento em que pudesse manifestar-se, ou seja, quando fosse o que houvesse de ser eu. Largueza de espírito na minha próxima função social não faltava: compreensão e hospitalidade eram seguramente companheiros de jornada da minha futura actividade, ou mesmo de todas elas, rotativamente.

Apesar de tudo, não obstante a torrente de alternativas que desfilavam pela rampa da minha imaginação muito criativa e pouco criadora, e acreditem que com grande mágoa minha, nunca me passou pela cabeça a espantosa coisa de, por exemplo, ser o cão do Casimiro.

Foi preciso entrar naquilo a que os sabichões da existência apelidam fase da maturidade para colocar a possibilidade, tudo menos académica, de poder ter vindo a ser esse ser hipoteticamente possível que é um cão abandonado aos cuidados de um indivíduo como o Casimiro. Foi preciso conhecer os homens endurecidos pela tempestade atlântica, os homens amadurecidos de tão longamente dependurados na árvore do conhecimento, os homens semânticos da comunicação permanente, esses gigantes do lamento de não serem medíocres como todos os outros. Foi preciso essa rude prova para, finalmente, me vir ao espírito a fantástica ideia de desejar poder um dia dar vida ao génio, evoluindo até atingir o estádio de cão. Mais ambiciosamente ainda: atingir o estádio supremo que é ser o cão do Casimiro.

Que faria se tivesse conseguido sê-lo? Sei lá, talvez o mesmo que os outros cães de outros casimiros. Ou até os outros cães de não-casimiros. Para começar, não podiam pôr-me trela. Precisaria de ter os movimentos livres de empecilhos para poder escapar pelo primeiro quintal aberto no caso de, lá à frente, ao fundo da rua, aparecer um cão a quem eu devesse um osso. Perante essa eventualidade, não tão remota como pode parecer à primeira vista, teria de, muito discretamente, muito distraidamente, mudar de passeio para ir do outro lado cheirar todos os postes, portões e pneus de automóveis que encontrasse e, claro está, dar a minha mijinha aqui e acolá. O dono do osso que eu tivesse enterrado sei lá eu onde, se se cruzasse comigo na rua, e caso reparasse na minha presença, estou certo que não iria incomodar-me, como também eu o não importunaria nos seus próprios afazeres higiénicos; ele certamente esperaria melhor ocasião para me falar outra vez na porcaria do osso, assunto que nessa altura já me estaria a entesar os pêlos do focinho!

É, para poder ser o cão do Casimiro teria de beneficiar de total possibilidade de arbítrio, a garantia de ser livre para escapar para o capim do quintal do Roso, para me esgueirar para detrás dos carros estacionados, num ou noutro passeio, enfim, para reagir com naturalidade aos desafios do imprevisto.

Se eu fosse o cão do Casimiro, era certo que tinha de inventar distracções para não me aborrecer com as passeatas de início e fim de dia, pois o Casimiro anda tão estupidamente devagar que até enfurece um caracol. Para quem se diz habituado a correr, não está mal. Não, vocês não fazem ideia do que aquilo pode ser de preguiçoso... Chiça! Eu acho que é isso que o impede de ser como as outras pessoas em matéria de palmilhanço. O meu amigo Bobby diz que essa mania da anti-velocidade se deve, não tanto ao estudo crítico da obra de Bohr, mas, simplesmente, à maldita deformação lombar de que o indivíduo padece; mas o que eu acho mesmo é que ele é mas é tonto. Qual deformação lombar! Olhem que o esqueleto nunca impediu esse panhonhas de correr atrás de mim com a mangueira do jardim na mão!...

E o que é que eu poderia lá inventar para me divertir com o coxo atrás de mim? A sério, não se riam que o caso não está para isso. Não é nada divertido a gente cheirar tudo, e chegar ao fim e cheirar tudo outra vez, voltar atrás e fingir que se dá uma mija nos mesmos postes, pneus e torneiras, coçar uma pulga que a gente já coçou, enquanto, durante todo esse tempo, o dono apenas observou as propriedades do cobre com que foi feito um puxador de porta.

Ainda se ele olhasse para as janelas, a ver se via alguma dona a despir-se antes de ir para a cama, ou uma dona a ir para a casa de banho, de manhãzinha, fazer a toilette ao focinho e ao rabo… Mas não. O tipo olha é para coisas imbecis como, por exemplo, aqueles chuveiros abortados que os humanos chamam caleiras e que outros iguais a eles mas que trabalham na comuna chamam Gutierres ou gouttières ou lá o que é, e que outros ainda chamam outras coisas ainda mais complicadas de se dizer. O tipo olha mas é para os carros que desfilam, sem perceber muito bem como é que só ele é que tem de andar numa sucata ferrugenta a puxar escarros e a peidar toxinas.

A sério: essas saídas iriam enervar-me, por essas e muitas outras razões. Eu daria dois passos — e atenção!, que dois passos meus são quatro dos vossos, porque eu tenho o dobro das pernas —, mal tivesse dado esses dois passos e já estaria ele a chamar-me. De início eu ainda teria vindo atrás ver o que o palonço queria, mas como nunca quereria nada de especial, acharia escusado cansar-me em tais idas e vindas sem objectivo claro nem lucro evidente. Daí, vai de ignorar os urros e propostas de assobio, e faria de conta que se tratava era de tosse e isso libertar-me-ia à chamada. Oh, essa mania de estar sempre a chamar por mim irritar-me-ia até ao tutano!

Mas a obrigação de me manter no seu campo de visão seria aparentemente uma regra, pois um dia eu poderia desaparecer três segundos por uma esquina, esgueirando-me até à casota da Mimi, só para a cumprimentar e saber da sua vida de cadela, prisioneira de um pátio cimentado onde não se podia cagar nem nada, e seria uma tempestade de ralhos e ameaças que vocês nem queiram saber. Só porque umas semanas atrás teria compensado a Mimi da sua triste solidão, indo um pouco mais longe no consolo da pobre (eu, que também estaria necessitado de extravasar os meus sentimentos reprimidos), e o dono dela, que já se está a ver que é ainda mais chato que o Casimiro, acharia ser uma tragédia ver o quintal encher-se de rolinhos de lã bonitos como eu!

Essa aventura ter-me-ia custado uma semana de proibição de saída, mas para mim tanto se dava, pois já não precisaria de roçar os pêlos da barriga nas pernas dos amigos que iam a casa do Casimiro... Vocês estão a ver: entre a pelugem macia da Mimi e as calças de ganga empoeirada dos romeiros e rameiras que vão a casa do Casimiro... Ora digam-me lá: o que é que vocês próprios escolheriam?

Não, é que ser o cão do Casimiro não é obra fácil. Basta dizer que o indivíduo repete, todos os dias, meio como oração, meio como penitência intelectual, a estúpida aspiração: «Gostava de ser cão». Ah! O cão do Casimiro certamente gostaria de ser javali — ao menos teria orgasmos de meia hora!

Se eu fosse o cão do Casimiro pensaria que teria sido muito pior se tivesse sido o carro do Casimiro, ou simplesmente o motor, ou, ainda pior!, se tivesse calhado ser a caixa de velocidades do motor do carro do Casimiro. Nesse caso, para fugir aos assomos e às nervuras desse condutor amante do pau na mão, mete terceira, vai à quarta, volta a terceira, mete quarta e de pronto enfia a quinta, e já a marcha inversa para recomeçar logo de seguida a dança das velocidades... pois, nesse caso pouco me restaria de arbitrariedade, a não ser fingir enrouquecer, arranhar os brônquios, tossir, engasgar... mas ele haveria de me encharcar de óleo até ficar grogue. Não, caixa de velocidades do carro do Casimiro é que não, mil vezes não!

Teria sido, assim, muito gravoso para a minha estabilidade, como se aperceberam, ser fosse o que fosse do motor da carripana do Casimiro. Mas haveria pior. Ser, por exemplo, o intestino grosso do Casimiro, obrigado a suportar a cadência infernal de proteinolipidoglucídios, em exacta medida e em tempo apropriado, ventos ciclónicos a levantarem-me os cabelos, odores de lixeira a céu aberto qual plaina raspando-me as narinas... Por falar em narinas: e ser o nariz do Casimiro? Bolas! Que desconforto! Com um dedo sempre a sarrafunhar, sempre a dar a volta às prateleiras, sempre a mexericar, as pontas das gadanhas incansáveis armadas em escuteiro a escalar montanhas e atravessar abismos, clareiras e desfiladeiros...

Por isso, por tudo isso, estaria satisfeito com a minha sorte de cão.

Vistas as coisas por este buraco de fechadura, que mal teria ser o cão do Casimiro? Ser eu a espetar-lhe a minha fauna epidérmica, eu imune à sua, que é incongruente, desprezível e inofensiva. Uma fauna incaracterística que está bem instalada na base desses pêlos secos e estéreis e que não tem meios para viajar nem dotes para se instalar numa pele fresca e oleada como a minha. Em contrapartida, ser o Casimiro do meu cão não desejaria eu ao meu pior inimigo (olha, o Brat e a Dolce já se estão a rir... pois é, é de a gente se rebolar pelo chão...!).

Mais: se eu fosse o cão do Casimiro daria graças a deus não me ter calhado, na distribuição de identidades, ser um colega do Casimiro! Aí é que teria sido uma destas fadigas... abrenúncio, valha-nos a Santíssima Trindade!

Porque o meu dono actual tem colegas difíceis de inventar. Difíceis de imaginar mas que existem. Existem, sim! Desconheço como essas coisas acontecem, não cheguei a ler esse capítulo do coirão deste mundo mas o certo é que ele tem um montão de humanóides com a sorte de poderem olhar para ele sem receberem um osso em troca.

Um deles parece que fazia parte de um circo; um dia caiu de cabeça na pista e ganhou um lugar no asilo onde o Casimiro desenvolve um projecto de interesse para a Humanidade — lá, tentou fazer o mesmo número, ninguém aplaudiu, mas alguns, generosos, ainda assim conseguiram arreganhar a tacha, e no fim o domador achou que não valia a pena trabalhar com um animal daqueles.

Outro — uma fêmea recente — tirou um bilhete na rifa e saiu-lhe o número premiado. Aparentemente havia poucas artistas, a plateia exigia novos talentos, a comunicação social (sobretudo a edição cantina) farejava sem descanso, e assim a nova aquisição teve entrada directa para o corredor dos leões. Mas acabou por não divertir muito os fanáticos porque o corredor dos leões dava direitinho para a jaula do rei da selva. Como era de prever.

Teria sido bastante pior, com efeito.

Eu disse aqui há momentos que estaria satisfeito com a minha sorte de cão do Casimiro mas não é verdade. Não sabia se o que dizia ia ficar na mesma página ou se os leitores eventuais esqueceriam depressa, uma vez virada a folha. Não sabia que vocês iam prestar tanta atenção aos três ou quatro parágrafos que acabei de escrever. Todavia, deixem de pensar no Bico, que eu nem estava a falar dele, calha bem! Estava apenas a tentar encontrar razões para gostar de ser o cão do Casimiro.

Não gozem. Volto a dizer que isto não tem piada nenhuma. Imaginem-vos a cagar na neve. Imaginem-vos obrigados a ir fazer as necessidades num quintal com dez centímetros de neve, quando a vossa pata tem apenas doze centímetros de altura. O que é que vos gelava, ehm? Pois o Casimiro não recua perante condições meteorológicas desfavoráveis porque não são os tomates dele que gelam! Mas, a mim, força-me a ir para a rua, quando ele reserva todas as comodidades para a grande almofada que tem ao fundo das costas. E é por isso que ela ficou tão aplainada que hoje toda a gente jura por aqueles que lá têm que o Casimiro não tem almofada nenhuma atrás.

Adiante. Não quero ser o cão do Casimiro por muitas razões incluindo porque é muito difícil viver sempre a fingir que se segue todos os seus passos porque se gosta dele e não porque não queremos perder o momento de o ver estatelar-se ao comprido. E de tal forma que parta os ossos todos e deixe de fazer de polícia atrás de mim quando vou visitar as cachorras da vizinhança...

Longe de mim tal ideia. Não quero! Dirão que sou teimoso, mas eu estou-me a coçar uma carraça para vocês. Não quero ser o cão do Casimiro. Seria uma ideia tão absurda como a de ser o próprio Casimiro. As pessoas como o Casimiro dizem que não ser aquilo que são é uma ideia peregrina, e eu nunca percebi em que é que a fé tem a ver com a alucinação.Talvez ele se sinta bem na pele em que está embrulhado, e nalguns locais bem colado, mas, francamente, há coisas melhores para se ser. Preferiria ser o Dog Enn, aquele bicho com tão pouca notoriedade que até tem o nome de si próprio. A sério, preferia. Que assim teria imensa gente a querer partir-me o focinho e não querer fazer-me festinhas na língua, e teria outra imensa gente a querer cuspir-me na tromba, e o resto da imensa gente que existe tê-la-ia a rir-se nas minhas costas, para não dizer nada sobre o lombo nem nada sobre a cauda. O Casimiro, esse, ninguém detesta. Nem ninguém gostaria de o ser. Está certo. Está equilibrado. Noves fora nada. Balanço nulo. Zero absoluto. Nem positivo nem negativo, zero. Enfadonho...

A única desvantagem entre ser o cão do Casimiro, em vez de ser o dono do cão do Casimiro, é não poder ser promovido. Na altura certa, olha-se para ele e diz-se: "Está cada vez mais giro, mais humano, mais inteligente, mas tem que se deixar estar como está porque não se pode promovê-lo a gente". Quanto ao resto, a equivalência não se deixa arrancar ao padrão.

Sempre seria preferível ser o cão do Roso.

15.11.2001