24 setembro 2003

Doméstico faustino

O Faustino é um dos meus colegas de trabalho. Não tem descrição porque é um envelope; ou seja, um rectângulo ordinário de medidas ordinárias com uma abertura por trás. A sua história há-de ele um dia contá-la, se se lembrar de alguma coisa digna de referir e se nessa altura não lhe faltarem os termos adequados. Quanto ao resto, é uma figura muito rica e sumarenta — podíamos estar horas perdidas a falar dele. Mais do que do Gastão, de resto também de uma plasticina peculiar.

Colegas com o faustininho procuram-se desesperadamente e é raro encontrarem-se. Sempre presente nos momentos em que o que mais queremos é não ter que olhar para a sua irrelevância, e sistematicamente ausente quando a hora é de bater no bombo. Ainda há dias me entrou pelo gabinete, com o cigarro na mão teimosa de outro, para expressar, com o pesar que acompanha todos os silêncios, um certo descontentamento. Não pude ajudá-lo no diagnóstico porque desconheço os medicamentos que toma para aquilo de que padece. Era evidente que se tratava de um momento solene, senão ele não teria trazido aquela camisa nas cores da moda que vêm nas revistas que a esposa compra.

Não é novo que a maleita dos indivíduos como este meu querido colega de trabalho se transmite de geração em geração. O pai havia sido um ser desconhecido e da mãe não há mais registos do que do pai, de maneira que fica provada a transferência hereditária das alterações de humor sem razão aparente. Os colegas condescendem, eu mais do que ninguém, e por vezes aceitam mesmo trocar o faustininho por companhia mais interessante do ponto de vista sanitário, indo varrer as nódoas estéticas que têm na retina para o convento ali mais abaixo.

O Faustino tem outros métodos para abordar a existência. Não lhe cospe em cima mas aceita que o façam à sua, se ele não estiver por perto. Não desdenha um sorriso nos dias em que se espera que se afaste de tudo o que é vivo e são, e até parece que compreende. Parece, não, compreende mesmo. De facto, o Faustino tem um entendimento assaz normal, absolutamente dentro da média da sua própria graduação, e projecta nos que o rodeiam o sentimento de que pertence ao mesmo naipe. Dentro dele deve existir uma fórmula que lhe permite transferir qualidades para o seu gibão sem ter que retirar propriedades à matéria de origem, porque é-lhe fácil — e fá-lo com alguma graciosidade — admitir a inevitabilidade do sucesso em todos os seus empreendimentos.

Dócil como ele não há. Basta dizer-lhe ó Faustino tá calado que ele pára imediatamente de dizer asneiras, embora reconhecendo que tinha mais algumas prontas a sair. Ficam para a próxima, promete sempre. Cidadão da grande época do lixo em saquinhos de plástico — embora eu ache que ele é mais significativo como produto da geração do muito lixo em pequenas doses —, tudo quanto dizia ou mostrava era em extractos, em pedaços, em talões cujo bilhete respectivo ficava cativo do seu interlocutor. Quer dizer, uma postura perante a sociedade como qualquer outra postura, talvez mais recatada e modesta mas nem por isso menos permeável a influências.

Apesar de tudo, o Faustino era doméstico tanto quanto se não pode ser menos. Noutras bandas seria engraxador ambulante, por aqui teve a oportunidade de ser chato. No fundo do seu ser não era pegajoso, como pode parecer à primeira vista, nem cultivava esse bolor seco e sufocante que o enfadonho da sua pessoa transmitia aos demais. Não, no fundo era negro e frio, imenso espaço vazio e por isso mesmo hospitaleiro: os colegas podiam atirar-lhe lá para dentro todos os confettis que lhes apetecesse que de lá não sairiam nunca cartazes coloridos a anunciar festejos de carnaval; talvez, eventualmente, bandeirolas para manifestações de siderúrgicos. Assisti em algumas ocasiões a exercícios de enchimento desses espaços, à pazada, com areia do tempo, na esperança de ver devolvidos grandes edifícios filosóficos mas a teoria deve ter adormecido lá dentro. Ou ainda anda perdida, sei lá.

É assim o Faustino, coitado. Nunca fuma dentro de uma igreja.

1.3.2003