24 setembro 2003

Textos para o Nando #1

Uma série de lamechices escritas entre 20 e 27 de Novembro de 1998 para o meu amigo Nando utilizar na emissão "A Noite dos Corvos". Acho que nunca foram lançados para o ar. Vão agora... (alguns)



Primeiro texto


De noite não há sombras. De noite há medos. De noite não se vêem realidades, vêem-se projecções, instintos, probabilidades. De noite há gatos que parecem vivos, e as luzes escondem-se quando faz muito escuro. A Lua não tem olhos mas vê tudo e, quando lhe apetece, envia almas penadas para assustar meninos de todas as idades. De noite há pêlos eriçados mesmo se a brisa não sopra. De noite há sussurros, calafrios, exércitos de bruxas, emboscadas e tantas outras coisas tenebrosas.

(separador)

Mas... é de noite que os amantes respiram, é de noite que eles vivem à luz de si próprios. Não há melhor água que a da noite para rastejar livremente ao som dos grilos. É de noite que o amante, se vem, é para ficar. Mais um bocadinho. Enquanto a noite durar. Enquanto a floresta dorme e a civilização ressona. Enquanto os deuses estão distraídos e não há olhares indiscretos. De noite não há leis porque não há nódoas a apagar.

(separador)

De noite a gente não vê as cobras, é certo. Mas não as vê porque de noite não há cobras. Nem cobras nem minhocas. De noite só há corvos, e mochos, e morcegos, e grilinhos. E o melhor da noite é quando se juntam as minhocas e os grilinhos! Aquilo é que fazem uma festa, os dois!

(separador)

De noite até se fazem programas de rádio, vejam bem! De noite até há gente que dedica tempo a ouvir programas de rádio feitos para serem ouvidos de noite! Gente que não tem sono, gente que tem fantasmas nos olhos ou gritos de pássaros no peito, gente que anseia pela tranquilidade suprema de um programa de passarada, gente à procura da definição da miragem. A definição de miragem não vem no dicionário das pessoas normais, portanto procura-se em emissões com penas. Gente com penas e penares procura respostas em emissões com penas.

É uma pena...

(separador)

De noite não há tempo para fazer coisas, só há tempo para pensar. Por isso aqui estamos nós, eu deste lado, fechado entre quatro paredes com um micro apontado à cabeça, o ouvinte desse lado, do lado de fora, do lado da liberdade, do lado em que se pode dizer o que nos apetece. Deste lado só se pode dizer o que se pode dizer, e não se pode apetecer nada; desse lado pode dizer-se o que nos apetece mas não se pode dizer tudo, só aquilo que não se pode. Se o ouvinte dissesse apenas o que se pode dizer, de que lhe adiantaria estar do lado de fora, desse lado em que se não tem um microfone apontado à cabeça? E de que lhe adiantaria o atrevimento, ãh?

Bom, mas de qualquer modo, nem eu nem você faz nada nesta altura. A noite não existe para se fazer seja o que for. De noite só há espaço para pensar. Vamos então pensar...

(separador)

Já pensou? Então, o que é que pensou? Quê?! Pensou em não pensar em nada? Bolas, que você é mesmo feito para a noite: não só pensa, como pensa em não pensar. Olhe, eu não — por hábito não penso, mas como você está desse lado à espera que eu pense, vou ser-lhe franco: eu cá pensei em muita coisa.

Pensei, por exemplo, em desligar esta trampa toda e ir deitar-me; pensei também em acabar com a conversa e pôr música de embalar; pensei em alçar a perna direita; pensei que não se pode pôr um tomate no micro-ondas porque o outro fica entalado; pensei que há tipos com cara de porco; pensei que esta é a emissão que esta rádio precisava desde há muitos anos; pensei que não sou modesto; pensei na incompatibilidade entre ser-se discreto e fazer-se uma emissão para milhares de pessoas; pensei, pois claro, que estão milhares de pessoas e outros indivíduos a ouvir-me, neste momento; pensei que ainda não tinha pensado em nada; pensei em pensar em mais coisas; pensei que não tinha muito mais coisas para pensar; pensei que, no entanto, todas as coisas merecem ser pensadas; pensei, finalmente, em pôr um disco, para arrefecer o meu chip...

(separador)

Você continua a pensar, aí, desse lado? Porra, que você é teimoso! Páre lá um bocadinho! Páre de pensar e reserve todos os seus sentidos a este programa. Não acha melhor? Seja um corvo! Os corvos não pensam, fazem programas de rádio e ouvem programas de rádio. Os corvos estão acordados às duas da manhã para que outros corvos digam aos corvos amigos que há corvos que estão acordados às duas da manhã para ouvir programas de rádio feitos por corvos que também estão acordados às duas da manhã sem outra razão plausível que fazer programas de rádio às duas da manhã para corvos que se mantêm acordados a essa hora…

(separador)

Há uma questão para a qual o corvo deste lado do éter não encontra solução. É a seguinte:

(separador)

Há ou não corvos do outro lado? Se há, está o caso arrumado. Se não, duas coisas podem acontecer: ou têm rádio ou não têm rádio. Se não têm rádio, está o caso arrumado; se têm, duas coisas podem acontecer: ou o rádio está ligado ou não está ligado. Se o rádio não está ligado, está o caso arrumado; se está, duas coisas podem acontecer: ou está sintonizado na Latina ou não. Se não está sintonizado na Latina está o caso arrumado; se está, duas coisas podem acontecer: ou o som está baixo ou está alto. Se o som está baixo, está o caso arrumado; se não, duas coisas podem acontecer: ou estão a ouvir-me ou não me estão a ouvir. Se me estão a ouvir, está o caso arrumado; se me não estão a ouvir, duas coisas podem acontecer: ou estão distraídos ou não estão distraídos. Se estão distraídos, está o caso arrumado; se não estão distraídos, duas coisas podem acontecer: ou adormeceram ou não adormeceram. Se adormeceram, está o caso arrumado; se não adormeceram, duas coisas podem acontecer: ou estão na sala onde está o rádio ou...



Segundo texto


O carrinho das compras chiava. O Adalberto ajeitava pacientemente os rodízios para a posição conveniente, mas o malandro teimava em colocar-se de forma a travar o andamento. Mais do que isso: o maldito chiava. Onde lhe estaria a doer?

O Adalberto resolveu continuar as compras e esquecer a porcaria da chiadeira. De qualquer modo, metade da malta passava pela mesma consumição. Agora atravessaria a zona das conservas e quando chegasse aos queijos se calhar já o amaldiçoado estaria a sentir-se melhor. Teria dores de estômago? Seria do peso? É certo que a idade não ajuda um carrinho de compras a suportar jovialmente as toneladas de porcaria que lhe põem em cima todos os meses...

Na parte das frutas e dos legumes, a Adalgiza teve a sensata ideia de não pegar em nenhum saco de batatas. A Adalgiza é a senhora do Adalberto... E a Adalgiza sabe que a batata faz gases, engorda e entumesmece.

O carrinho já não podia com tantas dores. Para mim, aquilo era fita. O danado queria era pôr-se ao fresco. Sem razão, claro. Lá fora chove e faz frio, e é precisamente a morrinha que causa males nos ossos. Depois, a gente quebra e chia. Não se deve andar à chuva; pelo menos em dias de chuva, pelo menos no Outono, porque no Outono chove.

Pesaroso, o Adalberto encheu-se de compaixão. Decidiu tratar do assunto de uma vez por todas. Até porque a dona de duas pernas elegantes o olhou, por duas vezes, de soslaio, e não há necessidade nenhuma de desiludir a caça. A gente até não tem nada a ver com as maleitas dos carrinhos de compras!

Assim, o Adalberto resolveu voltar às prateleiras das latas de conserva, que ficavam ao lado das dos produtos para cozinhar. Olhou para a direita, olhou para a esquerda, não havia trânsito, passou. Isto é, baixou-se, abriu uma garrafa de azeite fino, verteu umas gotitas nos dois rodízios mais penalizados pela ferrugem. Levantou-se, observou ainda uma última vez os arredores, e deslizou suavemente, mais o burrico, com toda a carga em cima, silenciosamente, em direcção à caixa.

(separador)

A Adalgiza deu uma cotovelada no Adalberto. Este acordou do sonho lindo da dona das pernas de há bocado.

— Quê?

— A menina pergunta se não tens dois francos. Para facilitar o troco.

— Ah! Tenho, tenho...

A Adalgiza sorri, encavacada, para a menina da verruga que nesta altura estava a fazer o papel de caixa do supermercado. A menina da verruga parecia com pouca paciência e com pouca vontade de perdoar. A Adalgiza disse, então:

— Sabe, menina, o meu marido é um bocado duro de ouvido. Já tem 70 e muitos, compreende? Então desde há uns anos para cá... é surdo como uma pedra!

(separador)

É muito bom ser-se velho. É muito bom ser-se velho e casado com um velho ainda mais velho. Mais do que casado com um velho, ainda melhor é ser-se casado com um velho surdo que nem uma porta. A gente pode, finalmente, peidar-se à vontade!