03 abril 2006

A minha liberdade e a dos outros

De tempos a tempos, um esperto atira para a arena o axioma — que ele julga, se não próprio, pelo menos novo, e pretende quase iniciático — segundo o qual a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade de outrem. Bela impossibilidade! Como tal, tenho de sacar o meu revólver dos aforismos e tentar demonstrar que essa máxima indiscutível não é nem uma coisa nem outra.

Há quem veja o mundo e os seus acontecimentos de forma linear: tudo no mesmo plano, uns a seguir a outros. Talvez devido a um inculcado conceito de igualdade que, a meu ver, é falso: ombreamos na mesma dimensão.

Quanto mais não fosse pelo facto de, nas sociedades como na Natureza, haver hierarquias (1) e de tudo ser uma sucessão de hierarquias (2). Quanto mais não fosse pela trajectória dos satélites dos núcleos nos átomos. Quanto mais não fosse por viver num planeta e não num eixo espacial, eu tenho tendência a dar volume aos conceitos.

Para os indivíduos referidos no início deste postal não ilustrado, que são muitos, eles e cada um dos restantes indivíduos constituem uma unidade vertical espetada no centro de uma placa circular, que só pode movimentar-se até ao limite dessa circunferência. A distância é, a seu ver infinita, porque o movimento não parte obrigatoriamente do centro para a circunferência; pode efectuar-se entre qualquer ponto da circunferência e quantas vezes o indivíduo em questão desejar. O raio dessa placa circular não é conhecido, nem é preciso que o seja devido ao postulado anterior; mas parte-se do princípio que é consideravelmente superior à altura do indivíduo — ou de um indivíduo de referência —, porque essa superfície de acção está associada a um outro postulado, impossível de verificar por não estar caracterizado mas que se toma por verdadeiro (3), que é o de a democracia ser um bem vasto, um passo menos que infinito.

A menos que os meus conterrâneos citados no início vejam unidade vertical espetada no centro, não de um círculo, mas de um quadrado (ao qual, evidentemente, se aplicam as mesmas qualidades descritas atrás para o círculo). Tenho de colocar esta hipótese já que, supondo cada indivíduo uma estaca numa placa circular, igual a todos os outros igualmente colados a uma placa circular, e evidentemente ladeando-se e sucedendo-se até o infinito (o tal preceito igualitário dos conjuntos), os tais meus conterrâneos criam espaços vazios. Justapondo quatro círculos, criam-se um espaço central e oito repartidos pela periferia, nos quais não se aplicaria a liberdade de nenhum dos quatro círculos.

Neste momento do jogo sou forçado a escolher: ou círculos que criam terras de ninguém, onde tudo é possível independentemente dos círculos que os rodeiam, ou quadrados, que são extensões de jurisdição de cada círculo aos quatro quartos livres que lhes cabem. Escolher os círculos equivale a subentender espaços independentes dos indivíduos mas que os condicionam, quase uma pomba da Cat'rina; escolher os quadrados é imaginar um mundo ladrilhado, o que é monótono e, além do mais, não é lá muito bonito de se mostrar. Mas, para aquilo que vou tentar demonstrar, tanto faz. Tanto faz que a liberdade de cada um termine às vezes na ausência de liberdade de outro alguém...

A visão em apreço é, pois, como estava dizendo, linear. A acreditar nela, estaríamos todos dispostos uns a seguir aos outros, até o nunca mais acabar. Talvez por isso a comunicação é tão difícil: aos oito iguais que nos rodeiam ainda podemos dirigir a palavra normalmente, mas aos dezasseis seguintes já é com alguma dificuldade (sobretudo se algum dos oito mais chegados se coloca à frente) e com os vinte e quatro a seguir apenas a gritar podemos trocar ideias (facto que se agrava, claro, no caso de haver vários iguais na trajectória das mensagens). Coloquem mais um ou dois graus na equação (a altura de cada um de nós, a força vocal, etc.) e dêem lá razão aos linearistas da amplitude da liberdade por uma simples demonstração de causa-efeito.

Eu vejo essa questão mais de uma forma volumétrica, como já referi. Posso admitir que a unidade humana se represente por uma estaca biológica dotada de inteligência que começa o jogo no centro de uma placa circular, giratória ou imóvel, mas acho que as outras unidades se posicionam tanto ao lado como por cima ou por baixo, de invés e revés, observáveis a diversos ângulos. E que são móveis, e que fazem sombra, e que muitas vezes até se aglutinam, e muitas vezes a diversos níveis simultaneamente. Sendo assim, nada acaba onde nada começa. Mais: nada começa nem acaba.

Um dos meus anjos da guarda sussurrou-me agora ao ouvido que a base de sustentação imaginada não é necessariamente plana e que a unidade humana pode estar, antes, no centro de uma esfera ou de um cubo, que constitui o seu espaço de acção, e nesse caso já estaríamos em presença de uma dimensão volumétrica. Mas a mim, primeiro, falta-me o ar à ideia de vogar no interior de uma esfera ou de um cubo, mesmo sendo transparente. Segundo, os teóricos referidos acima não atingem tal nível de requinte; o que eles querem dizer é que tu não dominas mais do que a distância que os teus braços atingem, que mais abaixo do que o agachado não existe, e mesmo assim deves colocar-te de tal forma que os teus braços abertos não colidam com quaisquer outros braços abertos ou o local que tais braços atingiriam abertos, mesmo que estejam fechados a dado momento. O que é o mesmo que dizer que o teu espaço de manobra é um passo atrás ou à frente, para a esquerda ou para a direita, que são as coordenadas da unha do dedo grande de cada uma das mãos com os braços abertos. E, terceiro, o volume possível seria reduzido, pois resultaria da multiplicação de dois eixos cuja unidade é, como estamos a ver, relativamente curta. Portanto, ó esperto, ó anjo da guarda malfazejo, deixa-te de gramáticas porque estamos aqui, de facto, perante uma visão linear (li-ne-ar, ouviste?) da humanidade, perante um conceito a duas e não a três dimensões! E isso é mais do que redutor; é uma evidente impossibilidade.

3.4.2006

Notas
(1) O nosso sistema solar e os restantes estão todos sujeitos às leis físicas impostas pela galáxia, que embora seja a soma desses sistemas e de outros elementos, está numa relação de forças acima deles individualmente e tomados no seu conjunto; a dita "cadeia alimentar" estabelece que um dos elos é mais forte e está acima de um outro; além de que os planos das suas órbitas, embora concêntricos, não são sobrepostos.
(2) E não me chamem concêntrico, egocêntrico, niilista nem nada!
(3) Em ciência, chama-se a isto… olha esqueci-me, porra. Desculpem lá.