21 março 2006

Correr contra o cancro

Amigos meus foram correr "contra o cancro". Ou melhor, para falar claramente, eles participaram foi numa iniciativa que colocou centenas de pessoas a correr em circuito fechado com o objectivo de dar um pontapé em seres vivos. Já metemos em jaulas os leões, os ursos, os lobos, os tubarões e demais seres vivos considerados perigosos mas menos perniciosos — e assim, ao contrário de outros, não os liquidámos definitivamente para continuarmos a regalar a visão e outros sentidos. Já destruímos bactérias à falta de argumentos de variedade predadora. Agora é a vez de confinar células vivas em redomas, longe do olhar, longe do coração; intranquilos mas minimamente seguros e confiantes. O facto é que os organizadores de tal iniciativa, radicais e extremistas, não explicando o seu gesto de forma inequívoca, permitem que eu o interprete assim: eles e seus convidados puseram-se a correr como hamsters, num círculo gigante limitado por bancadas de pouca glória, para dar uma valente sova no cancro.

Aqui entre nós, que ninguém está a ouvir: a verdadeira finalidade deles era erguer um desafio aos fumadores. Desafio no sentido de prevenção meio aviso a resvalar para a ameaça. Sim, porque, para tais indivíduos, fumadores e cancro são elementos tão indissociáveis como espíritos indomáveis e comunismo. "Vêem como somos muitos a manifestar repúdio por essa espécie de vermes que teimam em continuar a fumar?" Vemos. "Mas não vêem que também nós somos obrigados a fumar o vosso fumo?" Não. Apenas temos uma sugestão a fazer: afastem-se. Ide para o campo, para a montanha, respirar ar puro, longe dos autocarros citadinos produtores de mercúrio e metais pesados, longe das concentrações industriais criadoras de riqueza e de ar poluído, longe dos escritórios a abarrotar de amianto, longe dos nossos loteamentos bombas de azoto e amoníaco, afastem-se de tudo isso e , sobretudo, do nosso pobre fuminho; ide!

Bem, a iniciativa agrupou mais de 180 equipas, algumas com duas dezenas de participantes! Obra inaudita em concentrações de cidadãos adormecidos. De facto, é impressionante como foi possível atrair tanta gente. Várias explicações são possíveis. Vou tentar meia dúzia delas: i) nesta região do interior europeu as pessoas têm a funesta tendência de imitar as formigas: para onde uma vai, ma yo, vai tudo em carreirinho (1) "y a quelque chose qui se passe…"; ii) nesta altura do ano ainda o tempo é frio e húmido, sempre é mais confortável uma corridinha em ambiente fechado que no exterior, com o vento nas ventas; iii) ao domingo não há nada para fazer, o festival dos salseiros e dos tanguistas acabou, portanto 'bora lá ao centro desportivo que é um dos espelhos da pujança burguesa da nossa suiçazinha; iv) nesta época de cargas policiais por tudo e por nada, as pessoas — tendo humana necessidade de exteriorizar — aderem a manifestações que sejam (por enquanto) politicamente correctas e nas quais, portanto, não se arriscam a levar um enxerto; v) após um século de audiovisual do engole-o-remédio-e-cala-te que-é-para-teu-bem, as pessoas engolem o comprimido da propaganda sem fazer uma careta sequer, e lá vão, cantando e rindo, a caminho da Coque; vi) à falta de oportunidades para tal, as pessoas viram ali uma ocasião de luxo para praticar uma boa acção e ao mesmo tempo sarar as suas consciências comprometidas.

Os meus amigos insistiram que me juntasse a eles, mas a palavra-de-ordem desmotivou-me. Para ser sincero, não me vejo a vomitar os bofes para lutar contra um organismo que nem sequer se apercebe da marosca, não ouve, não pensa, apenas é; um organismo que não usa as mesmas armas: não sabe correr. Sempre se disse que correr com um coxo é meio caminho andado para dar um valente trambolhão; agora imaginem um organismo sem pernas...

Ainda me perguntei se tal maremoto de confiança num ideal (correr às voltas = ganhar ao adversário) não criará uma espécie de metafísica cujo comprimento de onda possa chegar a um eventual receptáculo no organismo-alvo que o fizesse, por via de frequência do sinal ou algum mecanismo desconhecido, "compreender" a mensagem. Que era a seguinte: ou te anulas ou a gente vai continuar a lançar-te ondas que te vão pôr a cabeça em água. Mas a razão, no estado em que ela se encontra neste início do século XXI, pelo menos a minha, não me deixou criar um tal cenário — o cancro cá para mim não percebeu patavina do que se passou e continuou o seu trabalho natural de corroer uma boa parte dos indivíduos que se juntaram na Coque, no passado domingo.

Antes de mais, deixem-me gastar algum tempo a sorrir, imaginando que muitos daqueles atletas domingueiros vão cair, inexoravelmente, mais cedo ou mais tarde, às mãos do terrível adversário que se propunham combater (2). Não aquele adversário com cabelo em fibras de Nicotiana tabacum e que usa um belo casaco de folhas de Nicotiana rustica, e que tosse e escarra todas as manhãs; não esse em especial, mas todos os seus irmãos e primos que trabalham nos ossos, no sangue, no sistema nervoso, na mama, no pâncreas, no cólon, e noutras empresas. Cento e oitenta e oito vezes vinte coleópteros passaram um belo domingo solarengo enfiados numa concha sem entradas de ar com o espírito — numa fixação mais que orbital — bloqueado nessa grande empresa que são os pulmões, ignorando que o senhor ali ao lado, e a miúda mais lá à frente, e ainda aqueles dois acolá, têm já lugar reservado para a grande viagem até à Eternidade, com bilhete emitido por outra empresa do sector (enfarte do miocárdio sa, cirrose & hepatites sarl, acidente vascular encefálico irmãos & cia lda, etc.).

Outra razão para não fazer caso do convite é de ordem financeira. Então não é que as larvas do tabaco pediam 10 euros por pessoa para participar nessa grande cerimónia espiritual?! Justifica-se se pensarmos que não é todos os dias que nos é dado ladear os ilustres membros da confraria da modernidade numa verdadeira gala das boas consciências. Mas, por outro lado, volta a colocar-se um problema de raiz das nossas democracias da responsabilidade individual: é sempre à vítima que se pede remissão de pecados. O centro desportivo e culinário que dá pelo nome de Coque (não confundir com a palavra inglesa Cock) é uma entidade pública, construída com dinheiros públicos com o objectivo de servir o bem-estar público. Assim, esperar-se-ia uma adesão desse colectivo, simultaneamente emanação nossa e acima de todos nós, aos elevados ideais do acontecimento domingueiro: a luta contra o cancro. Luta essa dita prioridade sanitária absoluta e urgente dos governos europeus. E adesão aquela que poderia manifestar-se na disponibilidade de recursos — ou seja, a abertura do espaço, reporte das despesas de manutenção de um dia na rubrica "dia de luta contra um flagelo da Humanidade". Não, senhores. Apesar de tudo, a grande concha do Kirchberg custou uma pipa de massa — que os materiais são caros, os arquitectos ricos e o Estado vaidoso. Uma pipa de massa que não é para esbanjar com paspalhos que resolveram transpirar pelo bem de todos (há outros que rezam — sempre é menos cansativo, e menos dispendioso), certamente considerando que cada pingo de suor é um prego suplementar no caixão do cancro. Essa pipa de massa, numa sociedade capitalista, nomeia-se investimento; e investimento requer proveitos que o reponham e superem... para que a entidade pública possa voltar a investir em obras sociais... ou, talvez, quem sabe, em mais laboratórios e mais investigadores contra o cancro... Sim, quem sabe? Ou talvez em mais centros desportivos com falta de desportistas mas com muitos bananas a pagar 10 euros para "correr contra o cancro".

O que acabei de escrever é a parte fictícia deste episódio. É claro que o grandioso centro se mostrou generoso, e o pastel que os três mil inscritos tiveram de largar destina-se ao instituto local. O que não invalida nada. No mundo livre, virtuoso e democrático, uma instituição tão benemérita e altruísta quanto aquela não deveria, sequer, ter de andar na pedincha. Mas passemos adiante (antes que o Estado e os estadões se zanguem).

Eu, francamente, eu corro contra o cancro sem ter de pagar 10 euros. Vendo as coisas por outro prisma, com 10 euros pago um cocktail a uma garina que me vai dar cabo do canastro (e do cancro dentro dele). Dez euros tanto dá para comprar três maços de cigarros como para comer uns legumes suplementares, mas seja qual for a opção sempre são mais bem gastos do que a subsidiar uma instituição — benfeitora e meritória, é certo, mas... — cuja maior parte do orçamento é destinada a despesas correntes. Antes um uísque ou um charuto que meio cartucho de tinta para impressoras, não concordam?

21.3.2006

Notas:

(1) O Light às quintas-feiras é só um postal desta realidade endémica.
(2) Eu também, claro, não nego. Mas ao menos, neste entretanto, não ando para aí a correr feito parvo.