31 janeiro 2007

Ó grande vaga que vai apagar todos os cigarros do Mundo, dai-nos a paz!

Sou obrigado a dar a mão à palmatória. Eu, terrível maldizente das incongruências e da pequenez deste país onde vivo (como de outros, mas, neste caso, este é que conta), tenho de admitir que há algo que, neste país, é menos mau que noutras partes.

Observando o cerco que me estão a montar como fumador, assustando-me com medidas como a daquela escola flamenga onde os fumadores são obrigados a colocar um distintivo ao peito (onde é que eu já vi isto, mein Gott?) ou temendo a clandestinidade, como naquela cidade onde os fumadores se escondem atrás de árvores no fundo dos jardins ou em lixeiras camarárias, imagino que, muito em breve, ou me vergo à sapata da ditadura das virtudes, ou dou corda aos sapatos e regresso à savana, último espaço de liberdade.

Mas, mesmo assim, as boas consciências me perseguirão, dizendo: "Se ainda houver savana…" Pois é, ainda por cima sou culpado das mudanças climatéricas. Eu que até não sou dono de nenhuma fábrica de plásticos, de nenhuma refinaria, de nenhuma exploração de madeira, que não pesco ao arrasto, que não tenho automóvel a diesel nem empresa de transportes com centenas de camiões (nem sequer o consumidor+1 que obrigou o senhor Scholer, coitado, a importar mais um autocarro), eu que só tenho um rolinho de ervas com filtro de um lado e um fumito do outro — tão pequenino que eu sou e até enervo, vejam bem!, um senhor a quem chamam El Niño, que é uma espécie de Adamastor dos tempos modernos.

Pois é, sendo eu o perigoso homicida do cavalheiro que tem um tumor nos pulmões sem nunca ter fumado, bem mereço este cerco. E o aniquilamento próximo. Só não sei é quem foi o sacana que meteu uma cirrose (e a morte) no fígado de um senhor amigo da minha família que não bebeu uma gota de álcool durante toda a vida…

Não é que me custem as obrigações. Se um dia me vierem a caçar por usar camisas de um certo tipo de amarelo que provoca a cegueira, também não me custará deixar de vestir amarelo. E se — para acabar com a obesidade e o estrangulamento das coronárias, que mata mais gente que o fumito do meu cigarro bailando ao vento — os nossos amigos de além-mar proibirem as pessoas com mais de 60 quilos de frequentar fast-foods, estabelecendo pesadas multas a quem se lambuzar com um bom quarter, também deixarei de ir lá.

A ditadura é-nos tão familiar, e quotidiana, desde que foi preciso romper com a tão ecológica regra do mijo para marcar território, que a gente só estranha por não estranhar. O que me custa mais, sinceramente, é aquelas campanhas televisivas, numa tentativa de justificar a proibição de fumar, mostrando o sofrimento de uma pobre senhora que teve um [ai-não-se-pode-dizer] que um malandro qualquer lhe soprou lá para dentro. Estou à espera de uma campanha semelhante, no quadro e em justificação de uma lei que proíba o desemprego, mostrando o sofrimento daqueloutra senhora a quem tiraram o trabalho e o sustento. E, já agora, também espero uma campanha governamental, com imagens de pobres senhoras chorando a sua própria morte a fósforo branco — ou, pelo menos, um estropiamentozinho ou umas queimadurazecas —, lançada no âmbito e em propaganda de uma lei que esse mesmo governo tenha instituído para proibir o uso de armas químicas, ou mesmo apenas simples bombas contra civis. Mas a sério!

Posso esperar sentado, não é?

Seja como for, a verdade é que me estou a sentir como o atum vendo a rede a apertar-se (pior do que ele, na medida em que o atum se calhar até tem uma visão mais romântica da coisa; os humanos são menos fantasistas, sabem logo onde é que isto vai acabar). Pois, neste panorama — é aqui que se insere o reconhecimento expresso no título —, tenho de dar a mão à palmatória e admitir que o Luxemburgo é, ainda assim, o menos totalitário dos espaços nesta grande vaga que vai apagar todos os cigarros do mundo. Aleluia!

Aqui, ao menos, escreve-se a palavra de ordem por extenso. A guerra ao acto de fumar destina-se a evitar o contágio dos jovens, que eles deixem de começar tão novos a fumar, e ao mesmo tempo impedir o fumar por aproximação dos adultos? Então proíbe-se o acto de fumar em locais que a juventude possa frequentar e onde os adultos possam ir sem serem fumadores malgré-eux. Não se está cá com paninhos quentes hipócritas e balofos, nem com a choramingueira dos fumadores "passivos" de tabaco em cidades já de si poluídas até ao tutano.

O radicalismo de outros países é açúcar para os fumadores do Luxemburgo.

31.1.2007

03 abril 2006

A minha liberdade e a dos outros

De tempos a tempos, um esperto atira para a arena o axioma — que ele julga, se não próprio, pelo menos novo, e pretende quase iniciático — segundo o qual a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade de outrem. Bela impossibilidade! Como tal, tenho de sacar o meu revólver dos aforismos e tentar demonstrar que essa máxima indiscutível não é nem uma coisa nem outra.

Há quem veja o mundo e os seus acontecimentos de forma linear: tudo no mesmo plano, uns a seguir a outros. Talvez devido a um inculcado conceito de igualdade que, a meu ver, é falso: ombreamos na mesma dimensão.

Quanto mais não fosse pelo facto de, nas sociedades como na Natureza, haver hierarquias (1) e de tudo ser uma sucessão de hierarquias (2). Quanto mais não fosse pela trajectória dos satélites dos núcleos nos átomos. Quanto mais não fosse por viver num planeta e não num eixo espacial, eu tenho tendência a dar volume aos conceitos.

Para os indivíduos referidos no início deste postal não ilustrado, que são muitos, eles e cada um dos restantes indivíduos constituem uma unidade vertical espetada no centro de uma placa circular, que só pode movimentar-se até ao limite dessa circunferência. A distância é, a seu ver infinita, porque o movimento não parte obrigatoriamente do centro para a circunferência; pode efectuar-se entre qualquer ponto da circunferência e quantas vezes o indivíduo em questão desejar. O raio dessa placa circular não é conhecido, nem é preciso que o seja devido ao postulado anterior; mas parte-se do princípio que é consideravelmente superior à altura do indivíduo — ou de um indivíduo de referência —, porque essa superfície de acção está associada a um outro postulado, impossível de verificar por não estar caracterizado mas que se toma por verdadeiro (3), que é o de a democracia ser um bem vasto, um passo menos que infinito.

A menos que os meus conterrâneos citados no início vejam unidade vertical espetada no centro, não de um círculo, mas de um quadrado (ao qual, evidentemente, se aplicam as mesmas qualidades descritas atrás para o círculo). Tenho de colocar esta hipótese já que, supondo cada indivíduo uma estaca numa placa circular, igual a todos os outros igualmente colados a uma placa circular, e evidentemente ladeando-se e sucedendo-se até o infinito (o tal preceito igualitário dos conjuntos), os tais meus conterrâneos criam espaços vazios. Justapondo quatro círculos, criam-se um espaço central e oito repartidos pela periferia, nos quais não se aplicaria a liberdade de nenhum dos quatro círculos.

Neste momento do jogo sou forçado a escolher: ou círculos que criam terras de ninguém, onde tudo é possível independentemente dos círculos que os rodeiam, ou quadrados, que são extensões de jurisdição de cada círculo aos quatro quartos livres que lhes cabem. Escolher os círculos equivale a subentender espaços independentes dos indivíduos mas que os condicionam, quase uma pomba da Cat'rina; escolher os quadrados é imaginar um mundo ladrilhado, o que é monótono e, além do mais, não é lá muito bonito de se mostrar. Mas, para aquilo que vou tentar demonstrar, tanto faz. Tanto faz que a liberdade de cada um termine às vezes na ausência de liberdade de outro alguém...

A visão em apreço é, pois, como estava dizendo, linear. A acreditar nela, estaríamos todos dispostos uns a seguir aos outros, até o nunca mais acabar. Talvez por isso a comunicação é tão difícil: aos oito iguais que nos rodeiam ainda podemos dirigir a palavra normalmente, mas aos dezasseis seguintes já é com alguma dificuldade (sobretudo se algum dos oito mais chegados se coloca à frente) e com os vinte e quatro a seguir apenas a gritar podemos trocar ideias (facto que se agrava, claro, no caso de haver vários iguais na trajectória das mensagens). Coloquem mais um ou dois graus na equação (a altura de cada um de nós, a força vocal, etc.) e dêem lá razão aos linearistas da amplitude da liberdade por uma simples demonstração de causa-efeito.

Eu vejo essa questão mais de uma forma volumétrica, como já referi. Posso admitir que a unidade humana se represente por uma estaca biológica dotada de inteligência que começa o jogo no centro de uma placa circular, giratória ou imóvel, mas acho que as outras unidades se posicionam tanto ao lado como por cima ou por baixo, de invés e revés, observáveis a diversos ângulos. E que são móveis, e que fazem sombra, e que muitas vezes até se aglutinam, e muitas vezes a diversos níveis simultaneamente. Sendo assim, nada acaba onde nada começa. Mais: nada começa nem acaba.

Um dos meus anjos da guarda sussurrou-me agora ao ouvido que a base de sustentação imaginada não é necessariamente plana e que a unidade humana pode estar, antes, no centro de uma esfera ou de um cubo, que constitui o seu espaço de acção, e nesse caso já estaríamos em presença de uma dimensão volumétrica. Mas a mim, primeiro, falta-me o ar à ideia de vogar no interior de uma esfera ou de um cubo, mesmo sendo transparente. Segundo, os teóricos referidos acima não atingem tal nível de requinte; o que eles querem dizer é que tu não dominas mais do que a distância que os teus braços atingem, que mais abaixo do que o agachado não existe, e mesmo assim deves colocar-te de tal forma que os teus braços abertos não colidam com quaisquer outros braços abertos ou o local que tais braços atingiriam abertos, mesmo que estejam fechados a dado momento. O que é o mesmo que dizer que o teu espaço de manobra é um passo atrás ou à frente, para a esquerda ou para a direita, que são as coordenadas da unha do dedo grande de cada uma das mãos com os braços abertos. E, terceiro, o volume possível seria reduzido, pois resultaria da multiplicação de dois eixos cuja unidade é, como estamos a ver, relativamente curta. Portanto, ó esperto, ó anjo da guarda malfazejo, deixa-te de gramáticas porque estamos aqui, de facto, perante uma visão linear (li-ne-ar, ouviste?) da humanidade, perante um conceito a duas e não a três dimensões! E isso é mais do que redutor; é uma evidente impossibilidade.

3.4.2006

Notas
(1) O nosso sistema solar e os restantes estão todos sujeitos às leis físicas impostas pela galáxia, que embora seja a soma desses sistemas e de outros elementos, está numa relação de forças acima deles individualmente e tomados no seu conjunto; a dita "cadeia alimentar" estabelece que um dos elos é mais forte e está acima de um outro; além de que os planos das suas órbitas, embora concêntricos, não são sobrepostos.
(2) E não me chamem concêntrico, egocêntrico, niilista nem nada!
(3) Em ciência, chama-se a isto… olha esqueci-me, porra. Desculpem lá.

21 março 2006

Correr contra o cancro

Amigos meus foram correr "contra o cancro". Ou melhor, para falar claramente, eles participaram foi numa iniciativa que colocou centenas de pessoas a correr em circuito fechado com o objectivo de dar um pontapé em seres vivos. Já metemos em jaulas os leões, os ursos, os lobos, os tubarões e demais seres vivos considerados perigosos mas menos perniciosos — e assim, ao contrário de outros, não os liquidámos definitivamente para continuarmos a regalar a visão e outros sentidos. Já destruímos bactérias à falta de argumentos de variedade predadora. Agora é a vez de confinar células vivas em redomas, longe do olhar, longe do coração; intranquilos mas minimamente seguros e confiantes. O facto é que os organizadores de tal iniciativa, radicais e extremistas, não explicando o seu gesto de forma inequívoca, permitem que eu o interprete assim: eles e seus convidados puseram-se a correr como hamsters, num círculo gigante limitado por bancadas de pouca glória, para dar uma valente sova no cancro.

Aqui entre nós, que ninguém está a ouvir: a verdadeira finalidade deles era erguer um desafio aos fumadores. Desafio no sentido de prevenção meio aviso a resvalar para a ameaça. Sim, porque, para tais indivíduos, fumadores e cancro são elementos tão indissociáveis como espíritos indomáveis e comunismo. "Vêem como somos muitos a manifestar repúdio por essa espécie de vermes que teimam em continuar a fumar?" Vemos. "Mas não vêem que também nós somos obrigados a fumar o vosso fumo?" Não. Apenas temos uma sugestão a fazer: afastem-se. Ide para o campo, para a montanha, respirar ar puro, longe dos autocarros citadinos produtores de mercúrio e metais pesados, longe das concentrações industriais criadoras de riqueza e de ar poluído, longe dos escritórios a abarrotar de amianto, longe dos nossos loteamentos bombas de azoto e amoníaco, afastem-se de tudo isso e , sobretudo, do nosso pobre fuminho; ide!

Bem, a iniciativa agrupou mais de 180 equipas, algumas com duas dezenas de participantes! Obra inaudita em concentrações de cidadãos adormecidos. De facto, é impressionante como foi possível atrair tanta gente. Várias explicações são possíveis. Vou tentar meia dúzia delas: i) nesta região do interior europeu as pessoas têm a funesta tendência de imitar as formigas: para onde uma vai, ma yo, vai tudo em carreirinho (1) "y a quelque chose qui se passe…"; ii) nesta altura do ano ainda o tempo é frio e húmido, sempre é mais confortável uma corridinha em ambiente fechado que no exterior, com o vento nas ventas; iii) ao domingo não há nada para fazer, o festival dos salseiros e dos tanguistas acabou, portanto 'bora lá ao centro desportivo que é um dos espelhos da pujança burguesa da nossa suiçazinha; iv) nesta época de cargas policiais por tudo e por nada, as pessoas — tendo humana necessidade de exteriorizar — aderem a manifestações que sejam (por enquanto) politicamente correctas e nas quais, portanto, não se arriscam a levar um enxerto; v) após um século de audiovisual do engole-o-remédio-e-cala-te que-é-para-teu-bem, as pessoas engolem o comprimido da propaganda sem fazer uma careta sequer, e lá vão, cantando e rindo, a caminho da Coque; vi) à falta de oportunidades para tal, as pessoas viram ali uma ocasião de luxo para praticar uma boa acção e ao mesmo tempo sarar as suas consciências comprometidas.

Os meus amigos insistiram que me juntasse a eles, mas a palavra-de-ordem desmotivou-me. Para ser sincero, não me vejo a vomitar os bofes para lutar contra um organismo que nem sequer se apercebe da marosca, não ouve, não pensa, apenas é; um organismo que não usa as mesmas armas: não sabe correr. Sempre se disse que correr com um coxo é meio caminho andado para dar um valente trambolhão; agora imaginem um organismo sem pernas...

Ainda me perguntei se tal maremoto de confiança num ideal (correr às voltas = ganhar ao adversário) não criará uma espécie de metafísica cujo comprimento de onda possa chegar a um eventual receptáculo no organismo-alvo que o fizesse, por via de frequência do sinal ou algum mecanismo desconhecido, "compreender" a mensagem. Que era a seguinte: ou te anulas ou a gente vai continuar a lançar-te ondas que te vão pôr a cabeça em água. Mas a razão, no estado em que ela se encontra neste início do século XXI, pelo menos a minha, não me deixou criar um tal cenário — o cancro cá para mim não percebeu patavina do que se passou e continuou o seu trabalho natural de corroer uma boa parte dos indivíduos que se juntaram na Coque, no passado domingo.

Antes de mais, deixem-me gastar algum tempo a sorrir, imaginando que muitos daqueles atletas domingueiros vão cair, inexoravelmente, mais cedo ou mais tarde, às mãos do terrível adversário que se propunham combater (2). Não aquele adversário com cabelo em fibras de Nicotiana tabacum e que usa um belo casaco de folhas de Nicotiana rustica, e que tosse e escarra todas as manhãs; não esse em especial, mas todos os seus irmãos e primos que trabalham nos ossos, no sangue, no sistema nervoso, na mama, no pâncreas, no cólon, e noutras empresas. Cento e oitenta e oito vezes vinte coleópteros passaram um belo domingo solarengo enfiados numa concha sem entradas de ar com o espírito — numa fixação mais que orbital — bloqueado nessa grande empresa que são os pulmões, ignorando que o senhor ali ao lado, e a miúda mais lá à frente, e ainda aqueles dois acolá, têm já lugar reservado para a grande viagem até à Eternidade, com bilhete emitido por outra empresa do sector (enfarte do miocárdio sa, cirrose & hepatites sarl, acidente vascular encefálico irmãos & cia lda, etc.).

Outra razão para não fazer caso do convite é de ordem financeira. Então não é que as larvas do tabaco pediam 10 euros por pessoa para participar nessa grande cerimónia espiritual?! Justifica-se se pensarmos que não é todos os dias que nos é dado ladear os ilustres membros da confraria da modernidade numa verdadeira gala das boas consciências. Mas, por outro lado, volta a colocar-se um problema de raiz das nossas democracias da responsabilidade individual: é sempre à vítima que se pede remissão de pecados. O centro desportivo e culinário que dá pelo nome de Coque (não confundir com a palavra inglesa Cock) é uma entidade pública, construída com dinheiros públicos com o objectivo de servir o bem-estar público. Assim, esperar-se-ia uma adesão desse colectivo, simultaneamente emanação nossa e acima de todos nós, aos elevados ideais do acontecimento domingueiro: a luta contra o cancro. Luta essa dita prioridade sanitária absoluta e urgente dos governos europeus. E adesão aquela que poderia manifestar-se na disponibilidade de recursos — ou seja, a abertura do espaço, reporte das despesas de manutenção de um dia na rubrica "dia de luta contra um flagelo da Humanidade". Não, senhores. Apesar de tudo, a grande concha do Kirchberg custou uma pipa de massa — que os materiais são caros, os arquitectos ricos e o Estado vaidoso. Uma pipa de massa que não é para esbanjar com paspalhos que resolveram transpirar pelo bem de todos (há outros que rezam — sempre é menos cansativo, e menos dispendioso), certamente considerando que cada pingo de suor é um prego suplementar no caixão do cancro. Essa pipa de massa, numa sociedade capitalista, nomeia-se investimento; e investimento requer proveitos que o reponham e superem... para que a entidade pública possa voltar a investir em obras sociais... ou, talvez, quem sabe, em mais laboratórios e mais investigadores contra o cancro... Sim, quem sabe? Ou talvez em mais centros desportivos com falta de desportistas mas com muitos bananas a pagar 10 euros para "correr contra o cancro".

O que acabei de escrever é a parte fictícia deste episódio. É claro que o grandioso centro se mostrou generoso, e o pastel que os três mil inscritos tiveram de largar destina-se ao instituto local. O que não invalida nada. No mundo livre, virtuoso e democrático, uma instituição tão benemérita e altruísta quanto aquela não deveria, sequer, ter de andar na pedincha. Mas passemos adiante (antes que o Estado e os estadões se zanguem).

Eu, francamente, eu corro contra o cancro sem ter de pagar 10 euros. Vendo as coisas por outro prisma, com 10 euros pago um cocktail a uma garina que me vai dar cabo do canastro (e do cancro dentro dele). Dez euros tanto dá para comprar três maços de cigarros como para comer uns legumes suplementares, mas seja qual for a opção sempre são mais bem gastos do que a subsidiar uma instituição — benfeitora e meritória, é certo, mas... — cuja maior parte do orçamento é destinada a despesas correntes. Antes um uísque ou um charuto que meio cartucho de tinta para impressoras, não concordam?

21.3.2006

Notas:

(1) O Light às quintas-feiras é só um postal desta realidade endémica.
(2) Eu também, claro, não nego. Mas ao menos, neste entretanto, não ando para aí a correr feito parvo.

26 abril 2004

Fernandinho vai ao vinho

As manhãs de nevoeiro estão em franca contradição com a mentalidade do Fernandinho: baças e frias. Além disso, criam sinergias com os outros elementos da Natureza, pese o Fernandinho reagir aos seus pares: tornam escorregadio o terreno por onde se alastram. O rapaz tem de atravessar essas manhãs para efectuar tarefas árduas e que exigem engenho aguçado e espírito pertinaz. Como ir ao vinho.

Na impossibilidade prática de caçar leões ao pequeno-almoço, é criando pequenos desafios a cada dia que o Fernandinho satisfaz o espírito aventureiro. Um dos seus favoritos consiste em ligar simultaneamente, nos seus domínios, um punhado de engenhos movidos a energia eléctrica (normalmente bastará aspirador, televisor, leitor de CD, amplificador, rádio, computador, forno, frigorífico, congelador, secador de cabelo, batedeira, torradeira, varinha mágica, microndas, racleteira, secador de cabelo, vibrador, escova de dentes, cafeteira, ferro de engomar, máquina de lavar roupa, máquina de lavar louça e máquina de secar roupa, por esta ordem e bem acompanhados à guitarra com 47 lâmpadas). Exaustor q.b., de forma a juntar o útil, de dar uma finalidade a Cahora Bassa, ao agradável, de reviver bons serões à antiga contando histórias ao borralho da lareira.

Mais libertino do que seria permitido prever tendo em conta uma educação fielmente cristã — regrada, pacífica e discreta —, esse produto do conformismo despertou subitamente para os prazeres do bife. Sim, levantou-se uma vez sem pestanejar e atirou-se para o duche das carícias orientais com a ganância dos marinheiros de longo curso.

Claudicou ao primeiro contacto. Adivinhava-se, já que irreflectido como todos os impetuosos. Uma bezerra da cor do ouro, de bela pelagem e lábios tenros ofereceu-lhe lombo com molho de natas e vodka, de tal forma bem cozinhado que o pobre do Fernandinho não parava de se contorcer, pedindo para claudicar ainda mais! Os amigos e os confrades, fartos de gemidos sofredores, ofereceram-se para acompanhar o séquito fúnebre até que vissem cremado o mau-olhado.

(continua)

24 setembro 2003

Textos para o Nando #1

Uma série de lamechices escritas entre 20 e 27 de Novembro de 1998 para o meu amigo Nando utilizar na emissão "A Noite dos Corvos". Acho que nunca foram lançados para o ar. Vão agora... (alguns)



Primeiro texto


De noite não há sombras. De noite há medos. De noite não se vêem realidades, vêem-se projecções, instintos, probabilidades. De noite há gatos que parecem vivos, e as luzes escondem-se quando faz muito escuro. A Lua não tem olhos mas vê tudo e, quando lhe apetece, envia almas penadas para assustar meninos de todas as idades. De noite há pêlos eriçados mesmo se a brisa não sopra. De noite há sussurros, calafrios, exércitos de bruxas, emboscadas e tantas outras coisas tenebrosas.

(separador)

Mas... é de noite que os amantes respiram, é de noite que eles vivem à luz de si próprios. Não há melhor água que a da noite para rastejar livremente ao som dos grilos. É de noite que o amante, se vem, é para ficar. Mais um bocadinho. Enquanto a noite durar. Enquanto a floresta dorme e a civilização ressona. Enquanto os deuses estão distraídos e não há olhares indiscretos. De noite não há leis porque não há nódoas a apagar.

(separador)

De noite a gente não vê as cobras, é certo. Mas não as vê porque de noite não há cobras. Nem cobras nem minhocas. De noite só há corvos, e mochos, e morcegos, e grilinhos. E o melhor da noite é quando se juntam as minhocas e os grilinhos! Aquilo é que fazem uma festa, os dois!

(separador)

De noite até se fazem programas de rádio, vejam bem! De noite até há gente que dedica tempo a ouvir programas de rádio feitos para serem ouvidos de noite! Gente que não tem sono, gente que tem fantasmas nos olhos ou gritos de pássaros no peito, gente que anseia pela tranquilidade suprema de um programa de passarada, gente à procura da definição da miragem. A definição de miragem não vem no dicionário das pessoas normais, portanto procura-se em emissões com penas. Gente com penas e penares procura respostas em emissões com penas.

É uma pena...

(separador)

De noite não há tempo para fazer coisas, só há tempo para pensar. Por isso aqui estamos nós, eu deste lado, fechado entre quatro paredes com um micro apontado à cabeça, o ouvinte desse lado, do lado de fora, do lado da liberdade, do lado em que se pode dizer o que nos apetece. Deste lado só se pode dizer o que se pode dizer, e não se pode apetecer nada; desse lado pode dizer-se o que nos apetece mas não se pode dizer tudo, só aquilo que não se pode. Se o ouvinte dissesse apenas o que se pode dizer, de que lhe adiantaria estar do lado de fora, desse lado em que se não tem um microfone apontado à cabeça? E de que lhe adiantaria o atrevimento, ãh?

Bom, mas de qualquer modo, nem eu nem você faz nada nesta altura. A noite não existe para se fazer seja o que for. De noite só há espaço para pensar. Vamos então pensar...

(separador)

Já pensou? Então, o que é que pensou? Quê?! Pensou em não pensar em nada? Bolas, que você é mesmo feito para a noite: não só pensa, como pensa em não pensar. Olhe, eu não — por hábito não penso, mas como você está desse lado à espera que eu pense, vou ser-lhe franco: eu cá pensei em muita coisa.

Pensei, por exemplo, em desligar esta trampa toda e ir deitar-me; pensei também em acabar com a conversa e pôr música de embalar; pensei em alçar a perna direita; pensei que não se pode pôr um tomate no micro-ondas porque o outro fica entalado; pensei que há tipos com cara de porco; pensei que esta é a emissão que esta rádio precisava desde há muitos anos; pensei que não sou modesto; pensei na incompatibilidade entre ser-se discreto e fazer-se uma emissão para milhares de pessoas; pensei, pois claro, que estão milhares de pessoas e outros indivíduos a ouvir-me, neste momento; pensei que ainda não tinha pensado em nada; pensei em pensar em mais coisas; pensei que não tinha muito mais coisas para pensar; pensei que, no entanto, todas as coisas merecem ser pensadas; pensei, finalmente, em pôr um disco, para arrefecer o meu chip...

(separador)

Você continua a pensar, aí, desse lado? Porra, que você é teimoso! Páre lá um bocadinho! Páre de pensar e reserve todos os seus sentidos a este programa. Não acha melhor? Seja um corvo! Os corvos não pensam, fazem programas de rádio e ouvem programas de rádio. Os corvos estão acordados às duas da manhã para que outros corvos digam aos corvos amigos que há corvos que estão acordados às duas da manhã para ouvir programas de rádio feitos por corvos que também estão acordados às duas da manhã sem outra razão plausível que fazer programas de rádio às duas da manhã para corvos que se mantêm acordados a essa hora…

(separador)

Há uma questão para a qual o corvo deste lado do éter não encontra solução. É a seguinte:

(separador)

Há ou não corvos do outro lado? Se há, está o caso arrumado. Se não, duas coisas podem acontecer: ou têm rádio ou não têm rádio. Se não têm rádio, está o caso arrumado; se têm, duas coisas podem acontecer: ou o rádio está ligado ou não está ligado. Se o rádio não está ligado, está o caso arrumado; se está, duas coisas podem acontecer: ou está sintonizado na Latina ou não. Se não está sintonizado na Latina está o caso arrumado; se está, duas coisas podem acontecer: ou o som está baixo ou está alto. Se o som está baixo, está o caso arrumado; se não, duas coisas podem acontecer: ou estão a ouvir-me ou não me estão a ouvir. Se me estão a ouvir, está o caso arrumado; se me não estão a ouvir, duas coisas podem acontecer: ou estão distraídos ou não estão distraídos. Se estão distraídos, está o caso arrumado; se não estão distraídos, duas coisas podem acontecer: ou adormeceram ou não adormeceram. Se adormeceram, está o caso arrumado; se não adormeceram, duas coisas podem acontecer: ou estão na sala onde está o rádio ou...



Segundo texto


O carrinho das compras chiava. O Adalberto ajeitava pacientemente os rodízios para a posição conveniente, mas o malandro teimava em colocar-se de forma a travar o andamento. Mais do que isso: o maldito chiava. Onde lhe estaria a doer?

O Adalberto resolveu continuar as compras e esquecer a porcaria da chiadeira. De qualquer modo, metade da malta passava pela mesma consumição. Agora atravessaria a zona das conservas e quando chegasse aos queijos se calhar já o amaldiçoado estaria a sentir-se melhor. Teria dores de estômago? Seria do peso? É certo que a idade não ajuda um carrinho de compras a suportar jovialmente as toneladas de porcaria que lhe põem em cima todos os meses...

Na parte das frutas e dos legumes, a Adalgiza teve a sensata ideia de não pegar em nenhum saco de batatas. A Adalgiza é a senhora do Adalberto... E a Adalgiza sabe que a batata faz gases, engorda e entumesmece.

O carrinho já não podia com tantas dores. Para mim, aquilo era fita. O danado queria era pôr-se ao fresco. Sem razão, claro. Lá fora chove e faz frio, e é precisamente a morrinha que causa males nos ossos. Depois, a gente quebra e chia. Não se deve andar à chuva; pelo menos em dias de chuva, pelo menos no Outono, porque no Outono chove.

Pesaroso, o Adalberto encheu-se de compaixão. Decidiu tratar do assunto de uma vez por todas. Até porque a dona de duas pernas elegantes o olhou, por duas vezes, de soslaio, e não há necessidade nenhuma de desiludir a caça. A gente até não tem nada a ver com as maleitas dos carrinhos de compras!

Assim, o Adalberto resolveu voltar às prateleiras das latas de conserva, que ficavam ao lado das dos produtos para cozinhar. Olhou para a direita, olhou para a esquerda, não havia trânsito, passou. Isto é, baixou-se, abriu uma garrafa de azeite fino, verteu umas gotitas nos dois rodízios mais penalizados pela ferrugem. Levantou-se, observou ainda uma última vez os arredores, e deslizou suavemente, mais o burrico, com toda a carga em cima, silenciosamente, em direcção à caixa.

(separador)

A Adalgiza deu uma cotovelada no Adalberto. Este acordou do sonho lindo da dona das pernas de há bocado.

— Quê?

— A menina pergunta se não tens dois francos. Para facilitar o troco.

— Ah! Tenho, tenho...

A Adalgiza sorri, encavacada, para a menina da verruga que nesta altura estava a fazer o papel de caixa do supermercado. A menina da verruga parecia com pouca paciência e com pouca vontade de perdoar. A Adalgiza disse, então:

— Sabe, menina, o meu marido é um bocado duro de ouvido. Já tem 70 e muitos, compreende? Então desde há uns anos para cá... é surdo como uma pedra!

(separador)

É muito bom ser-se velho. É muito bom ser-se velho e casado com um velho ainda mais velho. Mais do que casado com um velho, ainda melhor é ser-se casado com um velho surdo que nem uma porta. A gente pode, finalmente, peidar-se à vontade!

Doméstico faustino

O Faustino é um dos meus colegas de trabalho. Não tem descrição porque é um envelope; ou seja, um rectângulo ordinário de medidas ordinárias com uma abertura por trás. A sua história há-de ele um dia contá-la, se se lembrar de alguma coisa digna de referir e se nessa altura não lhe faltarem os termos adequados. Quanto ao resto, é uma figura muito rica e sumarenta — podíamos estar horas perdidas a falar dele. Mais do que do Gastão, de resto também de uma plasticina peculiar.

Colegas com o faustininho procuram-se desesperadamente e é raro encontrarem-se. Sempre presente nos momentos em que o que mais queremos é não ter que olhar para a sua irrelevância, e sistematicamente ausente quando a hora é de bater no bombo. Ainda há dias me entrou pelo gabinete, com o cigarro na mão teimosa de outro, para expressar, com o pesar que acompanha todos os silêncios, um certo descontentamento. Não pude ajudá-lo no diagnóstico porque desconheço os medicamentos que toma para aquilo de que padece. Era evidente que se tratava de um momento solene, senão ele não teria trazido aquela camisa nas cores da moda que vêm nas revistas que a esposa compra.

Não é novo que a maleita dos indivíduos como este meu querido colega de trabalho se transmite de geração em geração. O pai havia sido um ser desconhecido e da mãe não há mais registos do que do pai, de maneira que fica provada a transferência hereditária das alterações de humor sem razão aparente. Os colegas condescendem, eu mais do que ninguém, e por vezes aceitam mesmo trocar o faustininho por companhia mais interessante do ponto de vista sanitário, indo varrer as nódoas estéticas que têm na retina para o convento ali mais abaixo.

O Faustino tem outros métodos para abordar a existência. Não lhe cospe em cima mas aceita que o façam à sua, se ele não estiver por perto. Não desdenha um sorriso nos dias em que se espera que se afaste de tudo o que é vivo e são, e até parece que compreende. Parece, não, compreende mesmo. De facto, o Faustino tem um entendimento assaz normal, absolutamente dentro da média da sua própria graduação, e projecta nos que o rodeiam o sentimento de que pertence ao mesmo naipe. Dentro dele deve existir uma fórmula que lhe permite transferir qualidades para o seu gibão sem ter que retirar propriedades à matéria de origem, porque é-lhe fácil — e fá-lo com alguma graciosidade — admitir a inevitabilidade do sucesso em todos os seus empreendimentos.

Dócil como ele não há. Basta dizer-lhe ó Faustino tá calado que ele pára imediatamente de dizer asneiras, embora reconhecendo que tinha mais algumas prontas a sair. Ficam para a próxima, promete sempre. Cidadão da grande época do lixo em saquinhos de plástico — embora eu ache que ele é mais significativo como produto da geração do muito lixo em pequenas doses —, tudo quanto dizia ou mostrava era em extractos, em pedaços, em talões cujo bilhete respectivo ficava cativo do seu interlocutor. Quer dizer, uma postura perante a sociedade como qualquer outra postura, talvez mais recatada e modesta mas nem por isso menos permeável a influências.

Apesar de tudo, o Faustino era doméstico tanto quanto se não pode ser menos. Noutras bandas seria engraxador ambulante, por aqui teve a oportunidade de ser chato. No fundo do seu ser não era pegajoso, como pode parecer à primeira vista, nem cultivava esse bolor seco e sufocante que o enfadonho da sua pessoa transmitia aos demais. Não, no fundo era negro e frio, imenso espaço vazio e por isso mesmo hospitaleiro: os colegas podiam atirar-lhe lá para dentro todos os confettis que lhes apetecesse que de lá não sairiam nunca cartazes coloridos a anunciar festejos de carnaval; talvez, eventualmente, bandeirolas para manifestações de siderúrgicos. Assisti em algumas ocasiões a exercícios de enchimento desses espaços, à pazada, com areia do tempo, na esperança de ver devolvidos grandes edifícios filosóficos mas a teoria deve ter adormecido lá dentro. Ou ainda anda perdida, sei lá.

É assim o Faustino, coitado. Nunca fuma dentro de uma igreja.

1.3.2003

Se eu fosse o cão do Casimiro...

Eu não fui educado de forma a invejar ninguém ou coisa alguma, vantagem, situação ou circunstância. No entanto, teria, penso eu, gostado sempre de ser o que a cada altura não era (e nunca fui coisa por aí além). Como todos os garotos, e, depois, como todos os adolescentes, sonhava em ser isto e aquilo. Ah!, como adoraria ser isto, mais tarde aquilo…

Não sendo, por natureza, humilde de desejos, apesar dos insistentes conselhos de minha avó materna nesse sentido, eu aspirava a tudo, sentia-me nado e formado para quase tudo. Mais (muito mais!) por ânsia de felicidade do que por ambição irracional, dava largas ao meu ecletismo activista e isso até me inspirava. Transbordava de projectos a tomar forma definitiva quando "fosse assim", transvasava de ideias a concretizar logo que "fosse assado".

Devo desde já deixar claro que nunca me faltou generosidade — o grande empecilho é que ela estava reservada para o momento em que pudesse manifestar-se, ou seja, quando fosse o que houvesse de ser eu. Largueza de espírito na minha próxima função social não faltava: compreensão e hospitalidade eram seguramente companheiros de jornada da minha futura actividade, ou mesmo de todas elas, rotativamente.

Apesar de tudo, não obstante a torrente de alternativas que desfilavam pela rampa da minha imaginação muito criativa e pouco criadora, e acreditem que com grande mágoa minha, nunca me passou pela cabeça a espantosa coisa de, por exemplo, ser o cão do Casimiro.

Foi preciso entrar naquilo a que os sabichões da existência apelidam fase da maturidade para colocar a possibilidade, tudo menos académica, de poder ter vindo a ser esse ser hipoteticamente possível que é um cão abandonado aos cuidados de um indivíduo como o Casimiro. Foi preciso conhecer os homens endurecidos pela tempestade atlântica, os homens amadurecidos de tão longamente dependurados na árvore do conhecimento, os homens semânticos da comunicação permanente, esses gigantes do lamento de não serem medíocres como todos os outros. Foi preciso essa rude prova para, finalmente, me vir ao espírito a fantástica ideia de desejar poder um dia dar vida ao génio, evoluindo até atingir o estádio de cão. Mais ambiciosamente ainda: atingir o estádio supremo que é ser o cão do Casimiro.

Que faria se tivesse conseguido sê-lo? Sei lá, talvez o mesmo que os outros cães de outros casimiros. Ou até os outros cães de não-casimiros. Para começar, não podiam pôr-me trela. Precisaria de ter os movimentos livres de empecilhos para poder escapar pelo primeiro quintal aberto no caso de, lá à frente, ao fundo da rua, aparecer um cão a quem eu devesse um osso. Perante essa eventualidade, não tão remota como pode parecer à primeira vista, teria de, muito discretamente, muito distraidamente, mudar de passeio para ir do outro lado cheirar todos os postes, portões e pneus de automóveis que encontrasse e, claro está, dar a minha mijinha aqui e acolá. O dono do osso que eu tivesse enterrado sei lá eu onde, se se cruzasse comigo na rua, e caso reparasse na minha presença, estou certo que não iria incomodar-me, como também eu o não importunaria nos seus próprios afazeres higiénicos; ele certamente esperaria melhor ocasião para me falar outra vez na porcaria do osso, assunto que nessa altura já me estaria a entesar os pêlos do focinho!

É, para poder ser o cão do Casimiro teria de beneficiar de total possibilidade de arbítrio, a garantia de ser livre para escapar para o capim do quintal do Roso, para me esgueirar para detrás dos carros estacionados, num ou noutro passeio, enfim, para reagir com naturalidade aos desafios do imprevisto.

Se eu fosse o cão do Casimiro, era certo que tinha de inventar distracções para não me aborrecer com as passeatas de início e fim de dia, pois o Casimiro anda tão estupidamente devagar que até enfurece um caracol. Para quem se diz habituado a correr, não está mal. Não, vocês não fazem ideia do que aquilo pode ser de preguiçoso... Chiça! Eu acho que é isso que o impede de ser como as outras pessoas em matéria de palmilhanço. O meu amigo Bobby diz que essa mania da anti-velocidade se deve, não tanto ao estudo crítico da obra de Bohr, mas, simplesmente, à maldita deformação lombar de que o indivíduo padece; mas o que eu acho mesmo é que ele é mas é tonto. Qual deformação lombar! Olhem que o esqueleto nunca impediu esse panhonhas de correr atrás de mim com a mangueira do jardim na mão!...

E o que é que eu poderia lá inventar para me divertir com o coxo atrás de mim? A sério, não se riam que o caso não está para isso. Não é nada divertido a gente cheirar tudo, e chegar ao fim e cheirar tudo outra vez, voltar atrás e fingir que se dá uma mija nos mesmos postes, pneus e torneiras, coçar uma pulga que a gente já coçou, enquanto, durante todo esse tempo, o dono apenas observou as propriedades do cobre com que foi feito um puxador de porta.

Ainda se ele olhasse para as janelas, a ver se via alguma dona a despir-se antes de ir para a cama, ou uma dona a ir para a casa de banho, de manhãzinha, fazer a toilette ao focinho e ao rabo… Mas não. O tipo olha é para coisas imbecis como, por exemplo, aqueles chuveiros abortados que os humanos chamam caleiras e que outros iguais a eles mas que trabalham na comuna chamam Gutierres ou gouttières ou lá o que é, e que outros ainda chamam outras coisas ainda mais complicadas de se dizer. O tipo olha mas é para os carros que desfilam, sem perceber muito bem como é que só ele é que tem de andar numa sucata ferrugenta a puxar escarros e a peidar toxinas.

A sério: essas saídas iriam enervar-me, por essas e muitas outras razões. Eu daria dois passos — e atenção!, que dois passos meus são quatro dos vossos, porque eu tenho o dobro das pernas —, mal tivesse dado esses dois passos e já estaria ele a chamar-me. De início eu ainda teria vindo atrás ver o que o palonço queria, mas como nunca quereria nada de especial, acharia escusado cansar-me em tais idas e vindas sem objectivo claro nem lucro evidente. Daí, vai de ignorar os urros e propostas de assobio, e faria de conta que se tratava era de tosse e isso libertar-me-ia à chamada. Oh, essa mania de estar sempre a chamar por mim irritar-me-ia até ao tutano!

Mas a obrigação de me manter no seu campo de visão seria aparentemente uma regra, pois um dia eu poderia desaparecer três segundos por uma esquina, esgueirando-me até à casota da Mimi, só para a cumprimentar e saber da sua vida de cadela, prisioneira de um pátio cimentado onde não se podia cagar nem nada, e seria uma tempestade de ralhos e ameaças que vocês nem queiram saber. Só porque umas semanas atrás teria compensado a Mimi da sua triste solidão, indo um pouco mais longe no consolo da pobre (eu, que também estaria necessitado de extravasar os meus sentimentos reprimidos), e o dono dela, que já se está a ver que é ainda mais chato que o Casimiro, acharia ser uma tragédia ver o quintal encher-se de rolinhos de lã bonitos como eu!

Essa aventura ter-me-ia custado uma semana de proibição de saída, mas para mim tanto se dava, pois já não precisaria de roçar os pêlos da barriga nas pernas dos amigos que iam a casa do Casimiro... Vocês estão a ver: entre a pelugem macia da Mimi e as calças de ganga empoeirada dos romeiros e rameiras que vão a casa do Casimiro... Ora digam-me lá: o que é que vocês próprios escolheriam?

Não, é que ser o cão do Casimiro não é obra fácil. Basta dizer que o indivíduo repete, todos os dias, meio como oração, meio como penitência intelectual, a estúpida aspiração: «Gostava de ser cão». Ah! O cão do Casimiro certamente gostaria de ser javali — ao menos teria orgasmos de meia hora!

Se eu fosse o cão do Casimiro pensaria que teria sido muito pior se tivesse sido o carro do Casimiro, ou simplesmente o motor, ou, ainda pior!, se tivesse calhado ser a caixa de velocidades do motor do carro do Casimiro. Nesse caso, para fugir aos assomos e às nervuras desse condutor amante do pau na mão, mete terceira, vai à quarta, volta a terceira, mete quarta e de pronto enfia a quinta, e já a marcha inversa para recomeçar logo de seguida a dança das velocidades... pois, nesse caso pouco me restaria de arbitrariedade, a não ser fingir enrouquecer, arranhar os brônquios, tossir, engasgar... mas ele haveria de me encharcar de óleo até ficar grogue. Não, caixa de velocidades do carro do Casimiro é que não, mil vezes não!

Teria sido, assim, muito gravoso para a minha estabilidade, como se aperceberam, ser fosse o que fosse do motor da carripana do Casimiro. Mas haveria pior. Ser, por exemplo, o intestino grosso do Casimiro, obrigado a suportar a cadência infernal de proteinolipidoglucídios, em exacta medida e em tempo apropriado, ventos ciclónicos a levantarem-me os cabelos, odores de lixeira a céu aberto qual plaina raspando-me as narinas... Por falar em narinas: e ser o nariz do Casimiro? Bolas! Que desconforto! Com um dedo sempre a sarrafunhar, sempre a dar a volta às prateleiras, sempre a mexericar, as pontas das gadanhas incansáveis armadas em escuteiro a escalar montanhas e atravessar abismos, clareiras e desfiladeiros...

Por isso, por tudo isso, estaria satisfeito com a minha sorte de cão.

Vistas as coisas por este buraco de fechadura, que mal teria ser o cão do Casimiro? Ser eu a espetar-lhe a minha fauna epidérmica, eu imune à sua, que é incongruente, desprezível e inofensiva. Uma fauna incaracterística que está bem instalada na base desses pêlos secos e estéreis e que não tem meios para viajar nem dotes para se instalar numa pele fresca e oleada como a minha. Em contrapartida, ser o Casimiro do meu cão não desejaria eu ao meu pior inimigo (olha, o Brat e a Dolce já se estão a rir... pois é, é de a gente se rebolar pelo chão...!).

Mais: se eu fosse o cão do Casimiro daria graças a deus não me ter calhado, na distribuição de identidades, ser um colega do Casimiro! Aí é que teria sido uma destas fadigas... abrenúncio, valha-nos a Santíssima Trindade!

Porque o meu dono actual tem colegas difíceis de inventar. Difíceis de imaginar mas que existem. Existem, sim! Desconheço como essas coisas acontecem, não cheguei a ler esse capítulo do coirão deste mundo mas o certo é que ele tem um montão de humanóides com a sorte de poderem olhar para ele sem receberem um osso em troca.

Um deles parece que fazia parte de um circo; um dia caiu de cabeça na pista e ganhou um lugar no asilo onde o Casimiro desenvolve um projecto de interesse para a Humanidade — lá, tentou fazer o mesmo número, ninguém aplaudiu, mas alguns, generosos, ainda assim conseguiram arreganhar a tacha, e no fim o domador achou que não valia a pena trabalhar com um animal daqueles.

Outro — uma fêmea recente — tirou um bilhete na rifa e saiu-lhe o número premiado. Aparentemente havia poucas artistas, a plateia exigia novos talentos, a comunicação social (sobretudo a edição cantina) farejava sem descanso, e assim a nova aquisição teve entrada directa para o corredor dos leões. Mas acabou por não divertir muito os fanáticos porque o corredor dos leões dava direitinho para a jaula do rei da selva. Como era de prever.

Teria sido bastante pior, com efeito.

Eu disse aqui há momentos que estaria satisfeito com a minha sorte de cão do Casimiro mas não é verdade. Não sabia se o que dizia ia ficar na mesma página ou se os leitores eventuais esqueceriam depressa, uma vez virada a folha. Não sabia que vocês iam prestar tanta atenção aos três ou quatro parágrafos que acabei de escrever. Todavia, deixem de pensar no Bico, que eu nem estava a falar dele, calha bem! Estava apenas a tentar encontrar razões para gostar de ser o cão do Casimiro.

Não gozem. Volto a dizer que isto não tem piada nenhuma. Imaginem-vos a cagar na neve. Imaginem-vos obrigados a ir fazer as necessidades num quintal com dez centímetros de neve, quando a vossa pata tem apenas doze centímetros de altura. O que é que vos gelava, ehm? Pois o Casimiro não recua perante condições meteorológicas desfavoráveis porque não são os tomates dele que gelam! Mas, a mim, força-me a ir para a rua, quando ele reserva todas as comodidades para a grande almofada que tem ao fundo das costas. E é por isso que ela ficou tão aplainada que hoje toda a gente jura por aqueles que lá têm que o Casimiro não tem almofada nenhuma atrás.

Adiante. Não quero ser o cão do Casimiro por muitas razões incluindo porque é muito difícil viver sempre a fingir que se segue todos os seus passos porque se gosta dele e não porque não queremos perder o momento de o ver estatelar-se ao comprido. E de tal forma que parta os ossos todos e deixe de fazer de polícia atrás de mim quando vou visitar as cachorras da vizinhança...

Longe de mim tal ideia. Não quero! Dirão que sou teimoso, mas eu estou-me a coçar uma carraça para vocês. Não quero ser o cão do Casimiro. Seria uma ideia tão absurda como a de ser o próprio Casimiro. As pessoas como o Casimiro dizem que não ser aquilo que são é uma ideia peregrina, e eu nunca percebi em que é que a fé tem a ver com a alucinação.Talvez ele se sinta bem na pele em que está embrulhado, e nalguns locais bem colado, mas, francamente, há coisas melhores para se ser. Preferiria ser o Dog Enn, aquele bicho com tão pouca notoriedade que até tem o nome de si próprio. A sério, preferia. Que assim teria imensa gente a querer partir-me o focinho e não querer fazer-me festinhas na língua, e teria outra imensa gente a querer cuspir-me na tromba, e o resto da imensa gente que existe tê-la-ia a rir-se nas minhas costas, para não dizer nada sobre o lombo nem nada sobre a cauda. O Casimiro, esse, ninguém detesta. Nem ninguém gostaria de o ser. Está certo. Está equilibrado. Noves fora nada. Balanço nulo. Zero absoluto. Nem positivo nem negativo, zero. Enfadonho...

A única desvantagem entre ser o cão do Casimiro, em vez de ser o dono do cão do Casimiro, é não poder ser promovido. Na altura certa, olha-se para ele e diz-se: "Está cada vez mais giro, mais humano, mais inteligente, mas tem que se deixar estar como está porque não se pode promovê-lo a gente". Quanto ao resto, a equivalência não se deixa arrancar ao padrão.

Sempre seria preferível ser o cão do Roso.

15.11.2001

A fabricação de um livro

Para a letra J e todas as folhas que a têm

Há tantas folhas neste mundo, mas tantas!, que um indivíduo, por mais criterioso que seja, não consegue colocar umas em baixo das outras para fazer um livro. Um livro é difícil de fazer. Normalmente começa-se pela primeira página e acaba-se na última, mas há quem os faça de modo salteado. Um método indicado para baralhar o futuro utilizador e que garante foros de genialidade ao artífice. Mas a maior parte dos artífices dos livros, é bom notá-lo desde já, começa no início e acaba no fim. Há sempre um lugar à frente de um outro, há sempre qualquer coisa antes de outra, ou acima dela, ou à frente dela, dependendo da posição do observador. As pessoas racionais são assim, o que se há-de fazer?, são naturalmente levadas a manter-se na norma.

Eu, na minha ingenuidade, acho que o que é árduo é, precisamente, pôr as folhas em ordem. Ou melhor, numa ordem. Seja ela qual for. Por exemplo: qual é a folha que vai à frente de todas as que fazem parte do livro? Se todas forem grandes, fininhas, macias, de boa côr e boa textura, e se todas tiverem os cantos de cima dobrados para a frente convidando-nos a pegar neles para virar a folha, qual dessas folhas a gente escolhe para favorita? Isto é, para pôr à frente das restantes. Alguma dentre elas vai ter que estar logo a seguir à capa, e de resto não é essa a folha mais importante porque essa não diz nada; limita-se, como mendes da maia, a entalar-se entre a capa e as companheiras que se seguem. E alguma vai ter que estar a seguir a essa. Paciência... E outra depois. E outra a seguir. Mas quais?

Na verdade, deveria ter escrito o parágrafo anterior de outra maneira porque só vejo uma ordem para colocar as folhas. Mesmo se as separasse por país de origem, ou por matéria-prima de base, ou por trajecto efectuado até ser folha, ou por tonalidade, ou por rugosidade, ou por qualquer outra condição, a ordem seria apenas uma: da primeira à última. Em cada um desses hipotéticos grupos, não haveria outra ordem. Mesmo que se vire o monte de folhas de trás para a frente, a última folha passa a ser a primeira e a primeira a última, vista de costas, é claro. Detesto as evidências. Detesto o que é incontestável, porque o incontestável não existe. Detesto as verdades incontornáveis, e elas não param de se pôr no meu caminho. As verdades são incontornáveis quando não têm limites, e sem limites contrariam a sua função porque não deixam espaço para o que não é verdade. Impossibilitadas as não-verdades de existirem, tudo é verdade. E eu recuso-me a aceitar que tudo seja verdade. Porque toda a gente sabe que não é. Não é verdade, por exemplo, que as folhas se amarrotem quando as minhas mãos as percorrem afadigadamente; não é verdade que as folhas amoleçam quando o meu dedo mais comprido as humidifica para as virar de costas; não é verdade que eu já tenha folhas suficientes para fazer um livro. Sendo a verdade sempre absoluta, será verdade que eu quero fazer um livro?

A sério que queria fazer um livro! Um livro cheio de folhas bonitas, grande e pesado, sumarento e duradouro, porque um livro destes é uma fonte de prazer. Querer, queria; o problema é fazê-lo. Mas eu, mesmo que pareça demasiado paciente ou irritantemente retardado, não recuo perante nenhuma dificuldade, e por isso ando por aí, a tratar do assunto. Mas há tanta folha, meu deus! O caralho de folhas que há por aí... vocês nem imaginam!

Nos últimos dias resolvi começar a estender uma para lhe dar a consistência devida às agruras de fazer parte de uma obra para a eternidade. O material é de boa proveniência, o processo de fabricação decorreu nas melhores condições, de modo que o produto disponível é assaz adequado a manipulações. Ao tacto é macio, ao aperto é rígido, mas ao molde a coisa já não se processa com a mesma ligeireza. De tom claro, com partículas da madeira de onde é originária, linha de corte de alto que revela a opção do artesão de deixar pelugem solta, mais de formato linguado que o moderno ahquatro (moderno e pesadão, diga-se de passagem), ela era por tudo isso e por outras razões uma folha talhada para saltar para a frente de muitas outras já a monte. E estava, coitada, a subir os milímetros que a separavam do cimo, com muito custo, é certo, porque as outras folhas não se deixam pôr debaixo sem estrebuchar.

Vocês já alguma vez tiveram de endireitar uma folha quando ela teima em se enrolar? Então sabem como é uma dor de cabeça restabelecer o plano horizontal sem deixar marcas, rugas, enxovalhos, marcas por vezes profundas que não deixam à folha senão a possibilidade de passar pelo ferro, e é se quiser voltar a ficar direitinha. Portanto, as outras folhas bufavam, ou então era o vento que assobiava por entre elas, escoucejavam, contorciam-se... embora não fosse fácil, porque já tinham muitas outras por cima e muitas outras por baixo, de forma que lutar nessa circunstância de já estar esmagada entre outras folhas tão lindas e apetecíveis de desfolhar como elas não é obra desenganada. A nova folha em questão, sendo mais fina que as restantes, como hei-de dizer?, assim de um papel parecido com o papel-bíblia, apesar dos montes de Abraão e outras proeminências que se costumam encontrar por esses sítios, e sendo por outro lado mais fresca, deslizava com brilhantismo para um dos primeiros capítulos do livro. E eu estou em crer, não sou adivinho nem conheço bem a indústria livreira mas estou em crer que, se tiver oportunidade disso, a folha nova em questão que parece ser de papel-bíblia apesar dos tais montículos pode até acabar no prefácio, se não mesmo na dedicatória!

Não é que os meus amigos achem boa ideia. Eles, que edificaram bibliotecas inteiras, sabem o que se passa com as folhas que saltam de lugar subalterno para posição de destaque. Eles que, como toda a gente sabe, vieram de alexandria a nado, sabem por intuição o comportamento de todos os papiros e o efeito do tempo na sua textura e reacção perante a usura e a abusura. Eles sabem explicar porque razão algumas folhas do meio da tabela passam de um momento para o outro a brilhar: é que têm sebo!

Mas a opinião dos sábios para aqui não é chamada porque a teoria não é melhor do que a geada. Estava a descrever a evolução da folha que nos últimos dias resolvi começar a estender apenas para vos dizer que, vejam lá, não chega a gente a acabar de preparar uma folha para o nosso livro que logo outra não venha imiscuir-se na obra de criação! Pois é verdade o que vos conto. De uma esquina da mesa, ou detrás de um livro já escrito há muito tempo por outra pessoa e que a gente se limitou a encadernar, ou de outro local qualquer, surge como por encanto uma folha que estava de luto, ou estava simplesmente esquecida, ou cheia de pó ou sei lá, e se apresenta, escurecida mas viçosa e tentadora, pedindo com todas as letras que tem em cima para ser colocada num dos capítulos mais atraentes do livro — talvez entre o rapaz que se vai embora, para a guerra ou trabalhar para longe, e a decisão do pai da rapariga de convidar o filho do melhor freguês para jantar.

Mesmo que a gente tenha propensão para ajudar todas as folhas, e fornecer-lhes por exemplo refúgio no local que lhes cabe por condição, como se há-de fazer para convencer as restantes a apertarem-se um bocadinho mais porque afinal tem que se meter no livro uma outra folha, que leva o número de contribuinte da tipografia que o imprime? Dir-me-ão que por vezes se tem de fazer valer a autoridade que decorre do facto de se ser o criador do livro e impor, nem que seja obrigações solidárias. Até com sindicatos assim é: somos todos da mesma massa mas se nos aproximamos do fundo o escuro aumenta e no escuro a gente perde-se. Dir-me-ão porventura também que nem vale a pena consultar os outros fabricantes de livros ou discutir com eles desse assunto, porque eles lá têm os seus métodos e critérios e nós temos os nossos. É giro: já que se fala nisso, não sei se alguma vez repararam que cada um tem na ideia que a sua colecção de folhas é não só a mais selectiva como a mais bem ordenada, ou se pelo contrário vocês não dão importância a essas coisas e, portanto, não reparam em nada de especial. Pois não, vocês não fazem livros...

É que o acto de baralhar não é tão insípido como se julga, apaixona; não é tão dependente do acaso como pretendem os estrangeiros ao ofício, investe-nos. Outras actividades afins perdem no concurso do talento de elaborar um livro. Efectivamente, colocar folhas numa pasta não requer idêntica destreza, não exige o mesmo domínio das técnicas de selecção, classificação e arquivagem. Quanto muito, a dúvida reside no momento da etiquetagem, da escolha dos géneros e das classes, mas depois é relativamente fácil atirar com as folhas para a bolsa respectiva. Compartimentos contíguos, multimedianos porventura, mas não comunicantes — ou estás na bolsa da etiqueta azul ou na da amarela ou na da laranja. Não é a mesma coisa que fazeres parte de um conjunto homogéneo e no entanto hierarquizado.

Numa pasta com artifícios metálicos passa-se exactamente o mesmo, com a diferença que, nesse caso, o arrumador de folhas tem de fazer dois buracos, pelo menos, a cada uma delas. Com tal acção revela, desde já, desconhecimento da construção genética do material com que trabalha, na medida em que uma folha é fornecida com os dois buracos necessários ao ordenamento social; o que distingue o fabricante de livros é a arte de dissimular tais orifícios. O arrumador de folhas desvenda-os, ou apenas os identifica, e utiliza-os como ordenador não profissionalizado que é, enquanto a função do fabricante de livros é, antes, a de tapá-los, a de os preencher, sonegando-os a olhares infiéis. Amputar uma folha de uma parte do seu corpo, com o argumento, contestável, da necessidade de encaixe no padrão comum a todas, representado pelos dois finos tubos metálicos, significa pretender que a mutilação permite o alinhamento. Alguns dos grandes da História falharam nesse exame — é sempre necessário escolher com precisão as palavras com que se comunica mas mais importante é escolher os meios com que as pomos em andamento, e nisso eles cometeram erros. As barras da célula que mantém as folhas unidas dificulta também as mudanças de posição e, estático, o livro, no caso dos livros, definha, apodrece. As palavras mal utilizadas são a humidade dos nossos compêndios; e os meios mal aplicados a osteoporose das nossas estruturas.

Embora pareça o contrário, nada tenho pelo fabricante mais que pelo arrumador. Neste momento sou um fabricante de circunstância, não é esse o meu ofício nem a minha vocação. Fui assaltado pela primeira nuvem branca que passou e forçado a dar-lhe tacho e um justificativo de despesas. Estou neste lugar, senão pela primeira vez, em todo o caso fazendo o papel do principiante. O que quer dizer que não sou culpado, nem tenho preferências; nesse aspecto não sou ecuménico: todos os chulos são tão humanos como os juízes. Mas para não estragar o vosso caldinho, digamos que opto por estar do lado dos que fazem como eu: livros.

Evidentemente que não seria de crer eu meter-me em sarilhos para justificar um outro tipo de vigarista do livro que é aquele que dobra papel em quatro ou em oito, que o pressiona e o corta, por todos os lados, de tal modo que no fim cada um desses pedaços pareça uma folha, autónoma, independente. Esse canalha é, para a folha, o equivalente do cozinheiro para o macarrão — um generalista, um reprodutor. Ou seja, um prestidigitador, que de um único lenço faz um cordame multicolor infinito.

Até que alguém me prove a personalidade de um produto de clonagem, ainda que insistam na individualidade, e por mais que se oficialize a identidade, no que respeita a esses avulsos eu mantenho a teimosia do primeiro instante de todas as coisas. Ou seja, não podendo contestar contento-me sendo incrédulo. E ponto final, de nada vale discutir. Como disse, sou teimoso. Um livro faz-se, pacientemente, colocando com ternura uma folha em frente de outra, sucessivamente, uma vindo a ser elemento do grupo depois daquelas que o foram antes, ordenadamente, assim como estou aqui dizendo.

Tal como é indiscutível a suavidade desta fórmula de repetir sufixos (repararam?), assim é sem desafio o processo de gestão de folhas tão parecidas e tão diferentes que no acabamento não ficam nem uniformes nem desordenadas. A primeira a ser acariciada pode bem ser uma colocada no meio do rancho, como se pode perfeitamente tirar a limpo nos hábitos de avaliação de qualquer visitante de uma qualquer livraria. Esses indivíduos são mais detestáveis que os revisores de bilhetes — que os não imprimiram, nem decidiram do número de identidade ou dos restantes elementos, mas sabem identificá-los e furá-los. Os desfolhadores de livros nas livrarias procuram inspiração para justificar, posteriormente, a escolha, mas ignoram o que procuram exactamente. O que procuram então? Inspiração, precisamente. Um dado, uma ideia, um sinal, ocasional, fortuito, aleatório, que lhes forneça gramas a uma eventual decisão de ler, ou de dizer que estão a ler. Folheiam em pleno desinteresse do tecido que lhes passa entre os dedos, e por isso desiludem-se facilmente: a sua superioridade intelectual está em contradição com os cânones originais, sem os quais o seu intelecto comeria cascas de batata com feijões. Mais grave ainda, esse desprezo põe-se em contradição com os sentimentos das folhas. É chocante.

As folhas — pelo menos as que servem para fazer os meus livros — têm sentimentos. Quando lhes passamos a mão, mesmo nesse gesto mecânico do leitor distraído, elas olham para nós e produzem juízos. "Que parvo; a acariciar-me e a olhar para a página do lado!". Claro que elas não gostam que se tenham duas atitudes simultâneas. Não se deve vincar uma e preparar a seguinte, é mau. Sobretudo se, no desenvolvimento da leitura dos factos do mundo, se vai forçosamente vincar a que se havia preparado para passar de novo a mão pela que se seguirá. O paradoxo desta situação é que, contrariamente ao fazer do fabricante de livros, o tal distraído leitor com gestos mecânicos está a cada momento a dar, pelo menos em aparência, mais atenção à folha que, na lógica das coisas e na lógica do fabricante desse mesmo livro, se encontra por baixo, depois, a seguir... Em posição subalterna, portanto. É curiosa esta alternância na escala de valores: ora estás à frente, e daí em lugar de destaque, ora a tua importância cresce na medida em que estás atrás de outros. Não vale a pena terem "a impressão que", caros leitores; aceitem apenas, engulam o que vos digo. Isto só acontece nas sequências como são os livros: sequências de folhas. Todas postas em monte mas não em desalinho.

As folhas podem muito bem produzir juízos mas a minha sensibilidade diz-me que eu é que não procedi ajuizadamente ao conduzir o pensamento na direcção de uma verdade, já que tenho horror à verdade. A falta de território, de alternativa, de direito à contestação aflige-me. Falta-me o ar quando a verdade me atinge a traqueia: ela agarra-se, como um polvo, a todas as protuberâncias, com todas as suas mãos e todos os seus pés, com todos os lombos e todas as coxas, e não deixa passar mais nada! Tenho horror à verdade por o ser, por não ter costas e assim não poder dançar. Algo que rodopia e não deixa de ser exactamente o que é não passa de um enjoo em mar vidrado — não é verdade. Mesmo que o pretenda ser. O volume esgota-se, e isso é uma tragédia porque a sabedoria perde o sentido quando as dimensões se apagam, quando passa a existir apenas uma, a dimensão de um plano. Donde, para voltar à minha racionalidade, me permito a veleidade de afirmar que a verdade, em si, não o é. E posso esticar um pouco mais a corda, para baralhar os cansados de pensar, acrescentando que a verdade não é verdadeira.

Pois se virmos com atenção, até as folhas têm volume. Algumas, mesmo, um volume apreciável. Nas três silhuetas: na de perfil e nas de face. Daí que todas elas, colocadas umas contra as outras, peito contra costas, anverso contra verso, dêem origem a comentários — concludentes, bem entendido — do tipo "esse livro é grosso" ou "é um livro fininho". Sem a contribuição volumétrica de cada folha como se poderia chegar à conclusão do volume total de um livro? Bem sei que depende do papel de que a folha é feita, se tem mais ou menos serilha, mais ou menos gotículas de água ou de gordura, mais ou menos pelugem. Mas também depende do meu entusiasmo, já que estou aqui estou a acabar o livro sem sequer ter tocado numa só folha...

Pobre do fabricante que se deixa intimidar pelo volume de algumas das folhas ou, mesmo, pelo tridimensionalismo da sua obra. Presa fácil da chacota dos outros fabricantes, daqueles cujo objectivo se limita aos desdobráveis e daqueles que não vão além dos relatórios de ano fiscal, todo aquele que desdenha da própria concepção perde o sentido da sua missão de seleccionador. E de pastor. Não se está diante de um varredor de parques, que apanha folhas uma a uma para depois as sacudir, sem jeito, para o balde do lixo; ele não é um funcionário da alfândega que recepciona as ordens de embarque e outros formulários tão imprescindíveis como anódinos e lhes dá o despacho habitual. Não, aqui está-se perante um são-pedro que fiscaliza bases, senão registos, em vez de almas, e as adequa, convenhamos, por ordem de chegada, antes de lhes atribuir outro local no ordenamento socio-folhístico.

Porque tem de haver uma ordem qualquer, conquanto não seja mecânica pois tudo o que não é composto em desrespeito da regra é moralmente descomposto. Este pastor, como os outros são-pedros, goza de arbítrio na escolha e na colocação das folhas umas em cima das outras, que é prazer que se não reconhece a almeidas, alfandegários e inspectores ferroviários. Este pastor está acima de ridículas legalidades — princípios, regras, contratos, regulamentos, manuais, códigos, leis, disposições normativas e outras cadeiras-de-rodas da criatividade. Ordens ordinárias. Está acima de todos os emplastros e próteses que condicionam o vivo e a expressão do vivo, que é o mesmo que dizer a liberdade.

Mostrem-me os vossos maços de papéis. Esses álbuns que, embora atados com fita de cetim de dar virtude, não passam de amontoados de folhas soltas, avulsas, desirmanadas, tresmalhadas como todas as multidões e todos os rolos de palha. O compacto pretende ser união. Ah, ah, deixem-me rir! Ó núcleo: a tua molécula dá-se bem com a vizinha de cima? Que partilha com ela, senão a espécie? O compacto reivindica-se homogéneo, ele que apenas está sujeito à relação da força da gravidade com a massa. Antes estar sujeito à relação de marido e mulher! Quando há somente uma circunstância de proximidade a árvore pertence à floresta, e os fetos também. As minhas folhas, todas tão queridas umas como as outras, todas artesãs da minha existência, fazem, cada uma delas em todas, o meu livro.


Ó lombada: talvez tenha acabado abruptamente,
mas o teu papel é colar-me.
Inocenta-me, pois.


21.1.2003